sábado, 8 de março de 2014


09 de março de 2014 | N° 17727
PAULO SANT’ANA | PAULO SANTANA

A criança que fomos

Émuito difícil pregar aos homens para que tratem bem os animais, a natureza e as coisas públicas, quando eles maltratam, até o sacrifício, as crianças.

Dói no coração e punge na alma a dor das crianças espancadas pelos pais ou pelos parentes. Acreditem, isso é um verdadeiro holocausto. Refiro-me às crianças sob os impiedosos grilhões paternos, durante toda a sua infância, encomendadas para a infelicidade e para a desgraça inteira de suas vidas, em face da crueldade a que são submetidas em seus lares.

Dói no coração e punge na alma, já nem falo das crianças abandonadas e extraviadas, que esta é a maior chaga social, a que mais nos envergonha – mas fico nas crianças sob a égide de seus pais, as que estão sob o domínio familiar, a quem é imposto o pior dos abandonos: não serem consideradas como pessoas, e sim como objetos da propriedade e dos caprichos gerenciais dos adultos.

Não me entendam mal, este não é um defeito privativo da nossa sociedade, é uma deformação grave de todas as civilizações.

O que dói no coração e punge na alma (atenção, meus leitores, que agora vem aí um pensamento superior, a mim ministrado pela lucidez do psicanalista Paulo Sérgio Guedes) é que grande parte de nós, adultos, aprende, por esse tratamento vivenciado na infância, a lidar da mesma forma com a criança que existe dentro de nós. Ou seja, impomos à nossa própria pessoa, durante nossa vida inteira, por esse vezo legado, o mesmo desrespeito que sofremos quando crianças.

Para ser mais didático, inconscientemente tratamos mal a nós próprios como pessoas – daí as nossas dolorosas desavenças íntimas –, da mesma forma que nos marcou a infância.

Sendo assim, os pais, os parentes, os professores, as autoridades, todos nós, temos de ter em mente o seguinte: façamos tudo que estiver a nosso alcance – e até mesmo o que não esteja – para que jamais um adulto venha a se envergonhar da criança que foi. Esta vergonha é que redunda no grande desastre existencial de cada pessoa e de todas as pessoas.

Só é feliz a pessoa que se orgulha enternecidamente de sua infância.

Sobre isso, leiam e releiam a magistralidade do grande poeta português Fernando Pessoa:

“A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.”


Crônica publicada em 3/6/2001

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