09
de março de 2014 | N° 17727
PAULO
SANT’ANA | PAULO SANTANA
A criança que
fomos
Émuito
difícil pregar aos homens para que tratem bem os animais, a natureza e as
coisas públicas, quando eles maltratam, até o sacrifício, as crianças.
Dói
no coração e punge na alma a dor das crianças espancadas pelos pais ou pelos
parentes. Acreditem, isso é um verdadeiro holocausto. Refiro-me às crianças sob
os impiedosos grilhões paternos, durante toda a sua infância, encomendadas para
a infelicidade e para a desgraça inteira de suas vidas, em face da crueldade a
que são submetidas em seus lares.
Dói
no coração e punge na alma, já nem falo das crianças abandonadas e extraviadas,
que esta é a maior chaga social, a que mais nos envergonha – mas fico nas
crianças sob a égide de seus pais, as que estão sob o domínio familiar, a quem
é imposto o pior dos abandonos: não serem consideradas como pessoas, e sim como
objetos da propriedade e dos caprichos gerenciais dos adultos.
Não
me entendam mal, este não é um defeito privativo da nossa sociedade, é uma
deformação grave de todas as civilizações.
O
que dói no coração e punge na alma (atenção, meus leitores, que agora vem aí um
pensamento superior, a mim ministrado pela lucidez do psicanalista Paulo Sérgio
Guedes) é que grande parte de nós, adultos, aprende, por esse tratamento
vivenciado na infância, a lidar da mesma forma com a criança que existe dentro
de nós. Ou seja, impomos à nossa própria pessoa, durante nossa vida inteira,
por esse vezo legado, o mesmo desrespeito que sofremos quando crianças.
Para
ser mais didático, inconscientemente tratamos mal a nós próprios como pessoas –
daí as nossas dolorosas desavenças íntimas –, da mesma forma que nos marcou a
infância.
Sendo
assim, os pais, os parentes, os professores, as autoridades, todos nós, temos
de ter em mente o seguinte: façamos tudo que estiver a nosso alcance – e até
mesmo o que não esteja – para que jamais um adulto venha a se envergonhar da
criança que foi. Esta vergonha é que redunda no grande desastre existencial de
cada pessoa e de todas as pessoas.
Só é
feliz a pessoa que se orgulha enternecidamente de sua infância.
Sobre
isso, leiam e releiam a magistralidade do grande poeta português Fernando
Pessoa:
“A
criança que fui chora na estrada.
Deixei-a
ali quando vim ser quem sou;
Mas
hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero
ir buscar quem fui onde ficou.”
Crônica
publicada em 3/6/2001
Nenhum comentário:
Postar um comentário