terça-feira, 2 de fevereiro de 2010



02 de fevereiro de 2010 | N° 16234
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O terceiro capítulo

Está sendo lançado um novo romance de Sidney Sheldon (A Senhora do Jogo), mas dificilmente ele comparecerá à sessão de autógrafos, e isso por uma singela razão: morreu em 2005.

Tinha deixado o livro pronto? – perguntará o leitor distraído. Ao que eu responderei que não, que na verdade a obra foi composta por uma inglesa, Miss Tilly Bagshawe, cujo nome aparece discretamente na capa. Em contraste, o de Sidney Sheldon surge em letras berrantes, como convém a um escritor traduzido para 51 idiomas e que vendeu incríveis 300 milhões de exemplares no mundo inteiro.

É um dos mais espantosos casos de sobrevivência em toda a História. Transferido desta para melhor há cinco anos, Sheldon é um dos mais cotados nas listas de best-sellers em Europa, França e Bahia – e isso por um livro a que ele não adicionou uma vírgula.

Na verdade, segundo leio em reportagem de Jerônimo Teixeira na Veja, sua ajuda é indireta, pois o romance é uma saga familiar, o que significa que os principais personagens já existiam. Mas Miss Tilly está para lançar um outro livro com o nome de Sheldon, que não é mais a continuação de uma obra anterior, mas uma trama no estilo do autor.

É o que me leva a imaginar, por um simples exercício de fantasia, que um dos meus romances tivesse um seguimento póstumo. Como eu já não estaria mais aqui para avaliá-lo, só posso desejar que fosse um trabalho bem além de meu acanhado talento.

A mocinha seria um prodígio de beleza, os traços suaves, o corpo perfeito, as feições primorosas. Seria alta, teria os olhos e os cabelos claros, as curvas impecáveis. Seria rica, dona de uma imensa mansão e de uma cultura invejável.

Teria um affair inesquecível com um rapaz pobre porém honesto, e suas cenas de sexo seriam tórridas como a região equatorial. Seus diálogos seriam imperecíveis, plenos de sabedoria e de ternura. E seus pensamentos, um compêndio de bom senso e de partilha.

Lutariam por causas nobres e dignificantes, seus inimigos seriam todos derrotados, estenderiam a mão para os humilhados e os ofendidos. Prostariam os arrogantes, se imporiam aos tolos, venceriam os pérfidos.

E ninguém seria mais feliz do que eles.

Aqui faço ponto e vírgula e me dou conta de que personagens assim seriam infinitamente chatos, e ninguém leria sua história além do terceiro capítulo. A condição humana não suporta a perfeição, mesmo nas páginas de um romance.

Certa mesmo está Miss Tilly, que constrói sua história sem perdão, com a receita dos feios e dos maus, pois é assim que caminha a humanidade.

Uma linda terça-feira e um excelente feriado para quem está de feriado hoje. Para quem for viajar boa viagem.

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