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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
24 de fevereiro de 2010 | N° 16256
CÍNTIA MOSCOVICH
O tempo das coisas e das pessoas
Se fosse uma pessoa, a casa em que moro há 24 anos seria uma senhora com idade para ser avó. Ou bisavó. É da década de 30, o pai a comprou nos anos 70 e eu vim morar nela com meu marido na década de 80. É uma das poucas do Moinhos de Vento que resistem às ofertas das construtoras e à pressão das instituições vizinhas que derrubam árvores para estacionar carros.
Por 21 anos, minha casa foi um canteiro de obras: dá-lhe a trocar encanamento, fiação, escoras do telhado. Tratei dar novo viço a uma mangueira e a uma cerejeira-da-terra, árvores centenárias do terreno. Plantei jasmim, pés de laranja, limão, bergamota, jabuticaba – e dezenas de mudas exóticas e nativas.
Hoje em dia, a casa está pintada de azul-hortênsia. O telhado, antigo viveiro de musgos, ficou intocado. Um arquiteto sugeriu que lavássemos as telhas. Rechaçamos a ideia.
Sempre achei bonito o rastro de décadas de orvalho e de chuva, os fungos brotando entre as fendas das telhas: o tempo pintou nosso telhado com uma solenidade aconchegante e digna.
Estava pensando nisso, nas coisas, enquanto aguava as floreiras em frente da casa, no final da tarde, hora de raro sossego na redondeza. Foi quando apareceu essa senhora, que passeava com dois cachorrinhos. Os três, gente e bichinhos, pareciam ter muita idade e caminhavam devagar. A senhora era pura distinção: a golinha rendada e o cabelo branco de reflexos azulados davam-lhe um ar recatado, quase antigo. Ela falou:
– Adoro passar aqui. Como ficou bonita a rua depois da reforma de vocês.
Eu agradeci. Ela, no entanto, não se conteve:
– Só não entendi por que vocês não lavaram o telhado.
Eu pensei, pensei, pensei, porque queria que ela entendesse. Respondi:
– É que o telhado é a cabeleira da casa, que é uma senhora já de idade.
Ela fez cara de quem não entendeu. Eu esclareci:
– Acho que a gente deve respeitar os cabelos brancos de uma pessoa idosa, a senhora não acha?
Ela olhou para mim, olhou para o telhado, olhou para os bichinhos: refletia. Daí fez um ar sério, de quem conclui com grande seriedade:
– É.
E foi embora. Antes de dobrar a esquina, ela parou e olhou para trás, para o alto, para o telhado. Passou os dedos entre os cabelos, ajeitou um dos brincos. Falou uns mimos para os bichinhos. E tomou seu rumo, com uma dignidade de dar inveja.
A mim, só me restou enrolar a mangueira e concluir que as casas talvez pertençam às pessoas, mas o tempo nelas escrito é rigorosamente de todos.
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