quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010



Amor é ponto de fuga quando instabilidade sufoca o leitor

Tensão entre mal-estar urbano e memória infantil permanece em Corsaletti

FRANCISCO BOSCO-ESPECIAL PARA A FOLHA

"Everything is broken" -é a sentença que abre o novo livro de Fabrício Corsaletti. A "alegria/ está quebrada/ o cansaço/ está quebrado/ tudo está quebrado", conta-nos o poema inaugural. A ele sucede uma série de "Variações", nas quais a declaração explícita da abertura engendra-se laconicamente (e assim com maior contundência) na própria forma do poema.

Essas variações apresentam frases, descritivas ou aforismáticas, que são colocadas diante de um espelho, de modo a que cada dito se disponha em face a seu oposto.

Por exemplo: "Sou dos que vivem/ como se nada tivesse acontecido"; e, na página ao lado: "Não sou dos que vivem como se nada tivesse acontecido". A inversão das frases vai criando uma atmosfera de instabilidade, onde a verdade patina, desajeitada, sobre gelo escorregadio.

"O caminho é sempre o mesmo", "o caminho é sempre outro": Não se trata de aforismas cancrizáveis, em cuja inversão se pode ler sua formulação inconsistente, mas de aforismas em cuja hesitação pode-se ler a inconsistência do mundo. Tudo está quebrado.

Entretanto dentro da quebra surge o espaço possível: "Há uma pessoa no mundo/ que não está quebrada/ e eu estou ao seu lado". O amor é uma das utopias dos poemas, um dos pontos de fuga da perspectiva do livro, sendo o outro o desejo de "criar porcos em Araraquara", de passar "as tardes cuidando/ da horta e das galinhas".

Num plano existencial, o livro se encena na tensão entre o mal-estar na cidade grande, "chata" e "infernal", e as totalidades desejadas do amor, da infância e do vilarejo.

Dessa tensão decorre a dicção do livro, de um humor melancólico que faz pensar em Drummond. Se a dicção tem algo de oblíquo, o método é exato. O alicerce da arquitetura dos poemas são os espaços brancos produzidos pelos cortes de alta precisão.

Entre um verso e outro, entre uma estrofe e outra, abre-se um vazio: "As embalagens de plástico/ e as obras de artistas plásticos// -quero que a moça do telemarketing/ venha comigo".

Os pequenos blocos de versos boiam sobre os vazios como os blocos de cor nas telas de Rothko. Nesses espaços abertos pelos cortes situam-se o prazer e a dúvida do leitor.

Mas é uma economia variável. Há poemas em que os versos ligam-se visivelmente, como em "Culpa": "Não vou/me perdoar/ pelo que fiz// não vou/ me arrepender/ do que fiz// vou viver/ com esta dor/ a mais// como se/ na mão tivesse/ um// dedo a mais".

E há outros em que as pontes são queimadas: "A cidade estava sendo/ destruída// - eu tinha vontade/ de apertar/ a mão/ de cada um/ dos seus professores". Aqui são cortes drásticos, sulcos vastos, o travessão é o instrumento por excelência do talho, e ao leitor cabe refazer o percurso do poema.

Ao final, se um livro vale pelo quanto se prolonga finda a leitura, não posso deixar de recomendar um livro de que guardei belos poemas, e um que entrou para a minha antologia pessoal, "Lígia e os idiotas".

FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor de "Folha Explica Dorival Caymmi" (Publifolha)

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