quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010



18 de fevereiro de 2010 | N° 16250AlertaVoltar para a edição de hoje
L. F. VERISSIMO

Ser Sul

O rugby é mais popular do que o futebol na África do Sul. Talvez fosse bom tentar entendê-lo, para entender melhor a África do Sul ou ter assunto com os nativos durante a próxima Copa. Lembro que uma das dificuldades para conversar com os americanos sobre a Copa que acontecia na terra deles em 94 era, antes de mais nada, explicar que esporte era aquele que nos levara lá. Muitos diálogos começavam assim:

–Sabe o “football”?

– Sei.

– Pois o futebol não tem nada a ver.

O rugby tem até menos a ver com o futebol do que o “football”, que pelo menos tem 11 de cada lado. O rugby tem 15. Descobri que existe uma rivalidade hemisférica, Norte e Sul, no rugby.

Apesar de ter sido inventado na escola de Rugby, na Inglaterra, e levado ao resto do mundo pelos ingleses, como o futebol, o parlamentarismo e o chá com bolinho, os torneios internacionais de rugby têm sido dominados por países do hemisfério Sul. Numa recente final da Copa do Mundo que acompanhei porque estava na Europa, o time da França representava as esperanças do Norte contra a prepotência das ex-colônias, representada pela Austrália.

Já que não se deve ser neutro em nenhum momento da vida, para não correr o risco de virar suíço, fiquei me perguntando se deveria torcer pelos simpáticos franceses, que afinal eram o azarão do campeonato, ou se devia alguma forma de solidariedade subequatoriana aos australianos.

É mais difícil do que parece, definir nossas simpatias. Saber qual é o nosso, por assim dizer, time num sentido maior. Algumas adesões são fatais e não dependem de racionalização ou escolha. Espero que nunca chegue a isso, mas numa eventual guerra final entre homens e mulheres pela dominação do mundo servirei ao meu sexo, nem que seja como espião nos vestiários do inimigo.

Não adiantou muito a decisão de torcer contra o Brasil dos militares em 70: na primeira vez em que o Jairzinho partiu com a bola em direção ao gol adversário estava todo o mundo, de esquerda ou de direita, de pé, e empolgado. O coração tem razões etc.

Na questão racial a coisa se complica. Meu time é o dos brancos até certo ponto, também tenho sangue de índio e de negro, e mesmo o sangue de branco é um combinado ítalo-germano-português que desafiaria qualquer espirito ecumênico.

Torcer pra que raça? Torcer pelo Sul espoliado contra o Norte imperialista seria natural, e não apenas por uma fatalidade geográfica. Mas que possível identidade se pode ter com a Nova Zelândia e a Austrália, só para citar duas potências do rugby?

Ser torcedor do Hemisfério Ocidental contra o Hemisfério Oriental melhoraria a média de vitórias do nosso time, sem falar da sua situação financeira, mas significaria ser América de coração como se a América fosse toda igual.

“Ser” hemisfério Sul como se “é”, que remédio, Internacional ou Botafogo, significa ter mais afinidades com a África do Sul do que com o México. E – acabo de me dar conta – ter que torcer pela Argentina em qualquer confronto seu com representantes do outro hemisfério. Impensável.

Acabei torcendo pela França na final daquela Copa de rugby. Era o mais fraco contra o mais forte, latinos contra anglo-saxões, e, que diabo, Michel Legrand, Juliette Binoche, Camus e os direitos do Homem contra Olivia Newton-John e o canguru. Em certos casos a gente sabe, instintivamente, qual não é o nosso time.

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