terça-feira, 23 de fevereiro de 2010



23 de fevereiro de 2010 | N° 16255AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

O retrato perfeito

O outro dia contei aqui que volta e meia sou obrigado a submeter minha biblioteca a uma dieta, doando livros a escolas e instituições. Foi num desses regimes de emagrecimento literário que me desfiz, naturalmente sem querer, de O Apanhador no Campo de Centeio e Nove Estórias, duas obras-primas de J.D. Salinger.

Mas Deus ajuda os distraídos. Na Feira seguinte achei em um balaio, algo machucados, é verdade, os dois volumes. Arrematei na mesma hora. Tenho ambos agora à minha frente, devidamente restaurados, enquanto componho esta crônica. Já reli meus trechos preferidos: gosto de interromper ao perceber que, se não paro, acabo percorrendo cada vírgula, linha e parágrafo de tudo o que J.D. Salinger produziu.

Pois é essa sua grande singularidade. No zênite de seu poder criativo, aplaudido pela crítica, idolatrado por milhares e milhares de leitores, ele abandonou a sedutora agitação de Nova York para se refugiar entre os altos muros de uma mansão em Cornish, New Hampshire. Mais: limitou sua obra a quatro escassos livros.

Numa de suas raríssimas entrevistas – e também a última, concedida em 1974 – disse ao jornalista: “Há um enorme paz em não publicar. Publicar é uma terrível invasão de privacidade. Gosto de escrever. Mas escrevo para mim mesmo e para meu prazer”.

Ou seja: Salinger não deixou o ofício, que exerceu até morrer, há três semanas. Só não queria dividir seu poder de criação.

Nisso se parece com outro gigante da literatura. Stendhal confessou que escrevia apenas “para cem leitores, e desses seres infelizes, amáveis, encantadores, nada hipócritas, nada morais, aos quais gostaria de agradar, conheço apenas um ou dois.”

O autor de O Vermelho e o Negro e daquele inesquecível A Cartuxa de Parma não se preocupava também em dividir seus romances e ensaios, tanto que escrevia apenas para cem pessoas e não conhecia senão uma ou duas.

Morto depois de quase cinco décadas de solidão e de silêncio, é certo que Salinger deve ter deixado outros livros prontos, além do quarteto que lançou. Se apenas um deles tiver a densidade de O Apanhador no Campo de Centeio e a magnífica complexidade do personagem Holden Caulfield, estará enriquecida a ficção universal. Pois é esse o mais perfeito retrato que já se traçou de um adolescente.

Uma linda terça-feira ainda que com chuva conforme previsão do tempo

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