sexta-feira, 10 de julho de 2009



10 de julho de 2009
N° 16026 - DAVID COIMBRA


Dois mil anos atrás

Há uma cena de Calígula que é sempre citada por qualquer pessoa que tenha assistido ao filme, qualquer uma, infalivelmente, desde o seu lançamento, três décadas atrás.

É quando o César em pessoa irrompe no casamento de um de seus centuriões, toma os noivos pelas mãos, puxa-os para outra peça da casa e, lá, sobre uma tosca mesa de madeira, deflora a noiva, para em seguida, empregando banha de porco como lubrificante, empalar o noivo com o próprio punho, havendo o agravante de sua mão estar adornada pelo robusto anel metálico com o selo imperial.

O filme fez Porto Alegre trepidar de excitação. As filas emergiam das portas dos cinemas e se alongavam pelas calçadas naquele tempo de cinemas de calçada, e quebravam as esquinas, uma, duas, três esquinas.

Era preciso apresentar carteira de identidade para entrar. Carteirinha de estudante não valia, tinha de ser identidade, a fim de garantir que nenhum menor inocente testemunhasse as cenas de sexo, mais do que explícito, furibundo.

Calígula tornou-se célebre quase que só por suas passagens sexuais. Uma injustiça. O filme tem várias boas qualidades. Em primeiro lugar, é fiel ao relato histórico da vida na Roma dos primeiros césares.

Em segundo, a trama é bem urdida e bem contada. Em terceiro, alguns atores são craques. Dois deles pegam a camisa 10 de qualquer seleção de Hollywood: Malcom McDowell e Peter O’Toole. Esses dois, aliás, ficaram furiosos com o diretor, alegando que foram enganados por ele – as cenas mais escandalosas de sexo teriam sido acrescentadas depois que McDowell e O’Toole gravaram suas participações.

De fato, as cenas de sexo de Calígula são um tanto quanto... cruas, por assim dizer, mas os hábitos sexuais dos antigos romanos eram mesmo... crus.

A segunda passagem mais citada de Calígula é uma em que o imperador decide prostituir as mulheres e as filhas dos senadores. Elas são conduzidas à força a um bordel com o preço tabelado: 20 minutos de refestelo com uma parenta de senador custa cinco moedas de ouro, que serão repassadas patrioticamente para o tesouro do Estado.

Caio Calígula tinha especial apreço por ridicularizar o Legislativo, a ponto de empossar como senador o seu cavalo Incitatus. Seu desprezo pelo Senado valeu-lhe o amor do povo. Calígula só caiu em desgraça com os súditos quando a fome assolou Roma.

Passados 20 séculos, aqui estamos nós brasileiros, como todo o Ocidente, herdeiros culturais do Império Romano. Hoje, como no século 1, os brasileiros exultariam ao ver deputados e senadores humilhados. Hoje, como no século 1, os brasileiros amam seu governante apenas porque, como os velhos césares, ele lhes dá pão.

Dois mil anos de guerras travadas, de filosofias concebidas, de livros escritos, de palavras atiradas ao vento, e o povo é o mesmo, e os governantes são os mesmos, e os legisladores são os mesmos.

Dois mil anos de suposta evolução e, assistindo ao repulsivo matrimônio de Lula e Sarney, a única triste conclusão a que se chega é que nada, realmente nada muda debaixo do sol.

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