sábado, 4 de julho de 2009



04 de julho de 2009
N° 16020 - CLÁUDIA LAITANO


Descornamento galopante

Existem basicamente três formas de lidar com o sofrimento e a frustração. O modo fleumático é tão raro nos trópicos, que a maioria de nós apenas o conhece na teoria, descrito em livros antigos ou retratado em filmes de época. Trata-se do sujeito que mantém sua dor restrita às quatro paredes da sua privacidade, preservando o entorno do peso que carrega.

Elegante como um Burt Lancaster em filme do Visconti, esse ser aparentemente inabalável nem sempre é frio e desprovido de sentimentos, como os observadores mais apressados podem imaginar. Em casa, uma criatura fleumática é capaz de chorar durante horas ouvindo um arranhado LP da Maysa ou adormecer abraçada no velho porta-retratos que a amada deixou para trás.

Mas, em público, ninguém o verá sacar o lenço (sim, ele ainda usa lenços) para enxugar uma lágrima nem o flagrará falando mal de um ex-amor. O fleumático acredita que todo adulto deve ser capaz de administrar a cota de dor e frustração que lhe cabe com discrição e dignidade – e um toque de elegância, sempre que possível.

Discrição não é exatamente o forte dos chorões – categoria ampla, geral e irrestrita nos dias de hoje. Os chorões são aqueles que só entendem o sofrimento como um transe compartilhado coletivamente. Choram no escritório, alugam os amigos (e os desconhecidos), descrevem nos mínimos detalhes o drama que estão vivendo através de todas as tecnologias disponíveis. Os chorões dominam o mundo do individualismo ilimitado.

E como “eu” é a coisa mais importante do planeta, o “meu” sofrimento é uma notícia mais grave do que o derretimento das geleiras, e não só para “mim”. Apesar de exagerado e excessivamente expansivo, o chorão clássico não demora a se recuperar do abalo. Quando menos se espera, o chorão está curado, sorrindo, pronto para outra – e preparado para emprestar os ouvidos para algum novo chorão que acaba de se integrar ao clube.

Patético mesmo é o sofredor descornado, o tipo que transforma a própria dor em birra, raiva, ressentimento e mal-estar generalizado. Ser fleumático ou chorão é uma questão de temperamento, mas ser descornado é uma questão de caráter. O descornado é o sujeito que, de alguma forma, persegue o suposto causador de seu sofrimento: difama, trama vinganças mirabolantes e secretamente torce por acidentes pirotécnicos que inflijam fisicamente ao outro a dor que eles acreditam guardar no espírito.

O descornado goza com a dor alheia e não aprende nada com o próprio sofrimento. Nunca melhora com a idade: vai azedando lenta e progressivamente até se tornar insuportável ao convívio.

Mais cuidado: o descornamento pode ser um estado de espírito coletivo e atingir grupos, ambientes, cidades inteiras. Um visitante que tenha passado pela Capital esta semana, por exemplo, deve ter saído daqui com a certeza de que Porto Alegre é uma cidade descornada – ou, no mínimo, meio esquisita.

Não porque Inter e Grêmio se deram mal. Até onde minha flutuantíssima atenção ao tema foi, os dois times caíram brigando, viraram o jogo e foram raçudos até o último minuto. A bandeira de descornamento galopante foi a exagerada comemoração pelo fracasso do adversário que se viu (e principalmente se ouviu) nos dois dias de jogos.

Quando a desgraça alheia parece mais saborosa do que a própria vitória – e pareceu –, torcer tem tanto sentido quanto jogar pedra em passarinho. Mesmo assim, tem quem goste.

Nenhum comentário: