sexta-feira, 16 de janeiro de 2009


Autor(es): José Luis Oreiro - Valor Econômico - 16/01/2009

A "ortodoxia" e a economia da tautologia

O recrudescimento da crise financeira internacional a partir de setembro de 2008 produziu um acirramento do debate a respeito do modelo macroeconômico brasileiro.

De um lado, os economistas keynesianos defendem que o Brasil siga o exemplo dado por quase todos os países do mundo e adote políticas monetária e fiscal mais expansionistas com o objetivo de minimizar o efeito da crise internacional sobre o crescimento da economia brasileira.

Uma observação se faz necessária quanto ao "campo keynesiano": não há uniformidade de opinião entre esses economistas a respeito do mix adequado de expansão monetária e expansão fiscal.

Alguns defendem uma vigorosa expansão fiscal com base no argumento de que, na atual configuração política do governo Lula, mudanças na condução da política monetária não são possíveis porque implicariam em mudança na diretoria do Banco Central, o que estaria descartado a priori pelo presidente da República.

Outros defendem uma expansão fiscal mais moderada, focada apenas na manutenção e eventual ampliação dos gastos de investimento do governo, e uma mudança imediata na política monetária, com forte redução das taxas de juros.

O lado "ortodoxo" recentemente redescobriu a "especificidade" da economia brasileira, numa surpreendente aceitação de uma das premissas fundamentais do pensamento cepalino, argumentando que o que funciona acima da linha do Equador não vale para o Brasil.

Para os ortodoxos, uma expansão fiscal irá resultar apenas num aumento do déficit em conta corrente, agravando assim o desequilíbrio externo da economia brasileira. Como resultado do aumento desse desequilíbrio haverá um aumento do risco-país, aumentando assim a taxa de juros "externa" para os tomadores de empréstimos do Brasil no exterior.

Num contexto de ampla mobilidade de capitais, o aumento da taxa de juros "externa" deverá produzir uma redução do fluxo de capitais para o país, produzindo assim uma maior desvalorização da taxa de câmbio e obrigando o Banco Central a aumentar a taxa de juros para manter a inflação dentro das metas definidas pelo Conselho Monetário Nacional. O aumento da taxa de juros irá levar a uma redução do investimento e, dessa forma, a uma redução do crescimento da economia brasileira.

A posição "ortodoxa" fundamenta-se na aplicação daquilo que podemos denominar da "economia da tautologia", ou seja, a tentativa de se deduzir relações de causa e efeito de simples identidades contábeis, as quais são verdadeiras por definição, mas não permitem a inferência de relações de causalidade a não ser que se adicione às mesmas certos pressupostos teóricos.

Os economistas "ortodoxos" raramente explicitam a natureza de suas hipóteses teóricas, querendo passar ao leitor leigo em economia a idéia errônea de que os princípios de política econômica por eles advogados teriam a natureza de "verdades auto-evidentes", cuja contestação só é feita por economistas de segunda categoria.

O argumento de que o desequilíbrio externo é decorrência do "desequilíbrio fiscal" baseia-se numa identidade contábil segundo a qual a diferença entre a absorção doméstica, ou seja, a demanda de bens e serviços por parte dos residentes no país, e o PIB é necessariamente igual ao déficit em conta corrente.

A partir dessa identidade contábil, os "ortodoxos" afirmam que um aumento da diferença entre a absorção doméstica e o PIB real, causada, por exemplo, por uma expansão fiscal, irá resultar num aumento do déficit em conta corrente.

Nesse raciocínio estão implícitas algumas hipóteses teóricas não explicitadas pelos "ortodoxos". Em primeiro lugar, parte-se de idéia de que o déficit em conta corrente é a variável de resultado do sistema, ao invés de ser a variável "causadora" do mesmo.

Em outras palavras, o argumento "ortodoxo" pressupõe que o déficit em conta corrente se ajuste à diferença entre a absorção doméstica e o PIB real, e não o contrário.

Em segundo lugar, o argumento "ortodoxo" pressupõe que a economia esteja operando com um nível de produto igual ao potencial, e que a elasticidade de longo prazo do produto potencial às variações da demanda agregada seja próxima de zero.

Dadas essas hipóteses, um aumento dos gastos do governo irá resultar necessariamente num aumento do diferencial entre a absorção doméstica e o PIB, requerendo assim um aumento do déficit em conta-corrente para o reequilíbrio do sistema. Esse aumento do déficit em conta corrente será obtido por intermédio de uma apreciação da taxa real de câmbio.

O que acontece com o raciocínio exposto acima se as premissas teóricas sobre as quais se baseia o argumento "ortodoxo" não forem válidas?

Primeiramente devemos observar que a identidade contábil mencionada anteriormente admite uma outra interpretação. A partir da mesma podemos dizer que um aumento exógeno do déficit em conta corrente irá resultar num aumento do diferencial entre a absorção doméstica e o PIB. Nesse caso, a variável de ajuste será o PIB, ou seja, o PIB deverá se reduzir para acomodar um maior déficit em conta corrente!

Observe, caro leitor, que uma expansão fiscal, nesse contexto, é necessária para impedir a queda do PIB resultante do aumento do déficit em conta corrente, uma vez que o reequilíbrio do sistema pode ser obtido tanto por uma queda do PIB quanto por intermédio de um aumento da absorção doméstica, induzida por uma expansão fiscal.

Para que essa segunda interpretação da identidade contábil prevaleça sobre a primeira é necessário que o PIB real seja uma variável endógena, tanto no curto como no longo prazo. Aqui nos deparamos com a "ultima linha de defesa" da posição "ortodoxa".

Para os "ortodoxos" a economia não só opera, no longo prazo, com plena utilização de recursos, como ainda, e mais importante, o "produto potencial" ou a "taxa natural de crescimento" são inelásticos com respeito a demanda agregada.

A hipótese de plena utilização de recursos é facilmente contestável, ainda mais em economias, como a brasileira, que possuem "excesso estrutural" de força de trabalho.

Além disso, o grau de utilização da capacidade produtiva na indústria numa economia como a brasileira flutua historicamente em torno de um patamar entre 83% a 85%. Apenas durante o "milagre econômico brasileiro" é que se pôde constatar a plena utilização da capacidade da indústria, quando ela bateu o patamar de 95%.

Quanto a inelasticidade do produto potencial com respeito à demanda agregada, num trabalho publicado no Encontro da Anpec de 2007, o autor desse artigo mostrou que existem fortes evidências empíricas a respeito da endogeneidade da taxa natural de crescimento da economia brasileira.

Nossas estimativas mostram que essa pode flutuar entre 5% a 8% ao ano, dependendo do crescimento da demanda agregada.

José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB, pesquisador nível I do CNPq e membro da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: jlcoreiro@terra.com.br. Web: http://www.joseluisoreiro.ecn.br

Um ótimo fim de semana

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