31 DE MAIO DE 2022
TICIANO OSÓRIO
Piadas sobre Hitler, trans, pedófilos e um bebê morto
Supernatureza, stand-up do comediante inglês Ricky Gervais recém lançado pela Netflix, suscita uma polêmica complexa por sua subjetividade. Qual é o limite do humor? Quando uma piada se torna ofensiva? Dá para fazer rir falando sobre Hitler, pedofilia, aids, pessoas trans e um bebê morto?
São perguntas que meu amigo e colega David Coimbra (1962-2022) adoraria debater, na condição de quem defendia a liberdade de expressão e não tinha medo de mexer em vespeiros - além de ser um exemplo notório de bom humor. São perguntas que vêm à mente do espectador e à boca do humorista de 60 anos, famoso por criar e estrelar as séries The Office e After Life e por apresentar o prêmio Globo de Ouro - na última das cinco vezes, em 2020, atacou o telhado de vidro dos astros de Hollywood que se consideram politicamente engajados, mas que trabalham para empresas "comparáveis ao Estado Islâmico".
Logo no início de Supernatureza, Gervais trata de discutir o próprio ofício. No show anterior, Humanidade (2018), o artista relembrou que o humor é um antídoto contra o peso da vida - "Todos vamos morrer, então, vamos dar risada" (consigo ver o David dizendo isso!) -, afirmou que há diferenças cruciais entre o tema e o alvo de uma gozação e criticou a "enorme capacidade das pessoas de se sentirem ofendidas":
- Uma piada sobre uma coisa ruim não é tão ruim quanto a coisa, nem é necessariamente a favor dessa coisa. Pode ser contra. Depende da piada. É preciso entender o contexto. Rir de uma coisa ruim não o torna uma pessoa ruim.
Com esse didatismo, Gervais abre o novo stand-up dando uma definição de ironia:
- Eu falarei algo em que não acredito, só pelo efeito cômico, e vocês vão rir da parte errada, porque sabem qual é a coisa certa. (...) Odeio quando dizem: "Essa piada é ofensiva". Não, você a achou ofensiva. Sentimentos são pessoais.
Para uns, trata-se de um salvo-conduto mútuo: Gervais pode tirar sarro do que quiser, suas reflexões vão preparando o terreno para as barbaridades ditas, e suas risadas, sejam autênticas ou ensaiadas, como que reconhecendo a pisada em um campo minado, potencializam o distanciamento: estamos longe o suficiente da parte errada para rir dela. Para outros, porém, uma piada transfóbica será sempre um ato de transfobia.
A propósito, assim que Supernatureza estreou, a Netflix foi acusada, na imprensa e nas redes sociais, por reincidência. Afinal, em outubro de 2021, a plataforma lançou Dave Chappelle: Encerramento, um show de humor homofóbico, transfóbico e misógino que chegou a motivar greve na gigante do streaming. Agora, Gervais diz coisas do tipo:
- Eu amo as novas mulheres. Elas são ótimas, não são? Essas novas, com barba e pau. As antigas dizem: "Ah, querem usar nossos banheiros". Por que elas não deveriam usar seus banheiros? "São para mulheres!". Elas são mulheres, veja os pronomes delas! Qual parte dessas pessoas não é mulher? "Bem, o pênis dele." O pênis dela, sua preconceituosa! "E se ele me estuprar?" E se ela te estuprar!
Há quem compare o comediante inglês com o estadunidense. Eu acho que Chappelle, embora também aborde a herança nefasta da escravidão e o racismo da polícia e da sociedade nos EUA, concentra o foco nos homossexuais, na comunidade trans e no movimento feminista. São as velhas piadas sobre minorias, sobre grupos que convivem com a exclusão e o preconceito. A intolerância é travestida de deboche. Gervais é, digamos, mais democrático:
- Aceito qualquer ponto de vista para fazer a piada mais engraçada. Vou fingir ser de direita. Vou fingir ser de esquerda. (...) Falo sobre aids, fome, câncer, Holocausto, estupro, pedofilia. Mas não, a única coisa com a qual você não deve brincar é com a política identitária, é a questão trans. Essas pessoas só querem ser tratadas igualmente. Concordo. Por isso as incluo.
E, de fato, as piadas sobre trans estão lá e podem chocar, ofender, magoar. Assim como alguém pode achar pesado demais fazer humor sobre o enterro de um bebê. Ou afrontoso quando Gervais se compara com um ícone da luta contra o racismo ("Eu sou como Rosa Parks, só que lutei pelo direito de nunca sentar em um ônibus"). E há quem vá ficar muito sério ao saber que eu ri à beça em uma piada que envolve... anões.
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