16 DE JUNHO DE 2022
CARPINEJAR
Quando os mortos voltaram
Os cemitérios antigos, no interior do nosso Estado, foram levantados no alto das cidades. No ponto mais alto. Na cripta das ladeiras. Na cúpula dos morros. Na abóbada da catedral dos montes.
Quando você sobe a serra de carro, por exemplo, vislumbra esses espaços nos terrenos mais inclinados. Como se as cruzes estivessem entrelaçadas, à semelhança de parreiras e plantação de uvas.
Não é nenhuma superstição para que os mortos tenham a melhor vista. Ou alguma crendice moral de que é para que possam controlar tudo o que estão falando deles com uma perspectiva privilegiada de cima, fiscalizando ingratidão e intrigas.
Até gera estranheza, diante da especulação imobiliária galopante, que as melhores áreas dos municípios estejam ocupadas pela homenagem ao passado. A localização tem um sentido especial topográfico, para que os mortos não sejam levados por uma enchente. São protegidos das cheias dos rios, como se estivessem em um esconderijo no céu.
Em Marques de Souza, reserva verde ideal para o camping, a 135 quilômetros de Porto Alegre, eu testemunhei o que significa o caos funerário.
Houve uma enchente que ocupou 60% do território em janeiro de 2010, destruindo casas e deixando mais de cem famílias desabrigadas. Em menos de uma hora, caíram 320 milímetros de chuva, avolumando os rios Forqueta e Fão e desembocando em fúria semovente no Rio Taquari.
O cemitério foi invadido pelas águas, em remoção inacreditável das raízes e âncoras dos caixões. Estes partiram em direção ao perímetro urbano. Os esquifes viraram barcos, avançando nas entradas de comércios e nas margens das estradas.
Era como uma adaptação do último romance de Erico Verissimo, Incidente em Antares: os mortos voltavam. Se na ficção a ressurreição vinha da greve dos coveiros, na realidade o motivo se resumia a uma inundação sem precedentes.
Familiares perderam a referência dos túmulos, lápides boiavam quilômetros longe do lugar da despedida. Fazia-se necessária a reconstituição arqueológica do mapa das covas, remontar o delicado quebra-cabeça de cada cabeceira e campa de concreto e buscar os restos espalhados dos falecidos.
Já é difícil velar um ente querido uma vez, imagine o que é ser obrigado a efetuar um segundo enterro. Não há nada mais triste do que uma exumação forçada.
Os corajosos moradores de Marques de Souza enfrentaram o luto de novo, e levantaram a cidade a partir da saudade, do que representa seguir a vida em nome dos que nos antecederam. É a responsabilidade de jamais desperdiçar o valor do legado e honrar a memória. Um elo indestrutível com as nossas origens.
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