sexta-feira, 27 de maio de 2022


Ode ao gato

Às vezes não sinto desprezo absoluto quando assisto a um musical ou a um filme de amor. Às vezes é apenas um pouco de tédio. Tempos atrás, fui ver um clássico da Broadway, O Fantasma da Ópera. Fiquei encantado com a riqueza do espetáculo, mas toda aquela cantoria para narrar a história quase me aborreceu. Parecia que estava assistindo à Sessão da Tarde com a minha irmã Silvia.

A Silvia adorava aqueles filmes do Elvis Presley em que ele estava conversando com a mocinha e, de repente, começava a cantar. Aquilo me irritava, mas, na época, não tínhamos muitas opções, era só a Gaúcha, a Piratini, a Difusora e, depois, a Guaíba e a Pampa. Então, eu desistia da TV e ia ler um livro. Os musicais, de certa maneira, foram responsáveis por algum conhecimento livresco que tenho.

Minha irmã antecipou um padecimento que sofreria com outras mulheres na vida adulta. É que as mulheres e o Ticiano Osório A-MAM musicais e filmes de amor. Assim, volta e meia sento-me na poltrona do cinema para assistir a coisas como La La Land, que conseguiu juntar as duas modalidades: é um musical de amor.

Dando prosseguimento a essa minha sina, fui convencido pela Marcinha a ver Cats. Não o filme, a peça, outra campeã da Broadway, que está sendo levada aqui em Boston, num teatro belíssimo, o Opera House. Considerei razoável aceitar o convite, porque ouço falar em Cats desde os anos 80. Portanto, no fim de semana, lá fomos nós, eu, a Marcinha e o Bernardo. Quando sentei na plateia, sentia-me resignado. Quando levantei, sentia-me arrebatado. Porque, cara, EU GOSTEI de Cats.

Entenda a surpresa que tive comigo mesmo: nesta peça, os atores passam o tempo inteiro pulando no palco com bigodes de gato pintados debaixo do nariz e rabos postiços pendurados na cintura. O enredo é pueril, apesar de baseado em poemas de T.S. Eliot, e de música boa mesmo há tão somente uma, a consagrada Memory. Ainda assim, saí enfeitiçado do teatro.

Sabe por quê?

Por causa dos bailarinos. A flexibilidade, a leveza e a elegância dos bailarinos fez com que, em meio à apresentação, eu acreditasse que ali havia, realmente, um bando de gatos. Tinha uma moça em especial, uma bailarina que nem está entre as principais, ela não canta e não ocupa o centro do palco, mas não conseguia tirar os olhos dela, porque ela É, de fato, uma gata. Não há outra forma de descrever seus movimentos a não ser dizer que são "felinos". Chama-se Mariah Reives, é uma jovem negra da Carolina do Norte que está participando pela primeira vez da turnê nacional de Cats. A elasticidade de Mariah parece habilidade de mutante: ela levanta a perna e encosta o joelho na orelha como se estivesse colocando a mão no bolso.

Lembrou-me um poema imortal do imortal Pablo Neruda:

"O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento ao rato vivo,

da noite até seus olhos de ouro."

Recitei esse poema para a Marcinha e o Bernardo, depois do teatro, durante o jantar. Mas, no caminho de volta para casa, pensando um pouco mais, vi que estava errado. Eu não havia assistido a uma ode ao gato, era uma ode ao ser humano. À capacidade infinita do ser humano de, com disciplina, esforço e inteligência, fazer o que quiser. De se transformar no que bem entender. Seja num monstro que destrói, seja num anjo que protege. Ou, até mesmo, em um gato.

Texto originalmente publicado em 13 de janeiro de 2020

DAVID COIMBRA 

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