14 DE MAIO DE 2022
SAÚDE MENTAL
UM PORTO NÃO TANTO ALEGRE
CIDADE É A CAPITAL COM MAIOR ÍNDICE DE DIAGNÓSTICOS DE DEPRESSÃO. ESPECIALISTAS EXPLICAM MOTIVOS
Desde que foi diagnosticada com depressão há seis anos, a advogada Bárbara (sobrenome ocultado a pedido da entrevistada), 24, faz terapia psicológica e usa remédios para ansiedade. Durante o auge da pandemia, em meio à falta de perspectiva e o solitário isolamento no apartamento de Porto Alegre, as crises depressivas pioraram - sobretudo nos frios meses do inverno gaúcho, mais melancólicos.
- Minha depressão é cíclica: passo um período bem e depois posso ter um episódio complicado. Nas minhas crises, me torno apática. Não é ficar triste chorando sozinha, mas ficar quatro dias sem sair da cama, sem tomar banho, sem comer. É não conseguir reagir. Na pandemia, tive mais episódios complicados - afirma.
Bárbara ilustra o resultado de uma pesquisa do Ministério da Saúde divulgada no mês passado, segundo a qual Porto Alegre é, proporcionalmente, a capital com mais diagnósticos de depressão. Os resultados sugerem que a doença cresceu entre jovens.
Realizada anualmente pelo Ministério da Saúde, a pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) indagou no ano passado a seguinte questão: "algum médico já lhe disse que o(a) senhor(a) tem depressão?". Responderam 27.093 brasileiros de todas as capitais.
Em Porto Alegre, 17,5% das pessoas relataram já terem sido diagnosticados com a doença, o maior índice entre capitais - na outra ponta, está Belém do Pará, com 7,2%. Na média nacional, 11,3% dos brasileiros foram classificados, por seus médicos, como pessoas que vivem com depressão.
É uma contradição que se desenha em Porto Alegre: a cidade com pôr do sol e rua mais bonitos do mundo, como clama o afetuoso bairrismo, abriga, também, os brasileiros mais deprimidos. Além disso, em 2021 a cidade registrou a maior taxa de suicídio entre todas as capitais brasileiras, segundo análise de ZH sobre dados são do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), plataforma do Ministério da Saúde. Foram 9,65 suicídios a cada 100 mil habitantes. A seguir, estão Campo Grande (9,61) e Teresina (8,04). A menor taxa é a do Rio, 1,02.
A depressão, vale lembrar, tem influência genética (se seus familiares têm depressão, você tem maiores chances de desenvolver), mas é afetada por fatores sociais (pobreza, desigualdade, desemprego, violência urbana), comportamentais (traumas, maus-tratos na infância) e até climáticos (países escandinavos têm mais taxas de depressão por conta do inverno rigoroso).
Uma mistura em algum grau desses fatores explica a maior presença de depressão em Porto Alegre desde antes da covid-19. Diz a médica psiquiatra Cristiane Stracke, coordenadora do departamento de saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde da capital gaúcha (SMS):
- Países com mais tempo de inverno têm índices de depressão mais altos, pela menor luz solar e interação durante o frio. Muito inverno e escuro interferem na biologia do organismo. Além disso, a maior parte das pessoas aqui tem descendência europeia, que é mais propensa a depressão e suicídio. Pode ser gene ou questão cultural. Alemães, por exemplo, têm uma rigidez maior.
u "os dados detectam também qualidade do serviço médico", diz psiquiatra
Ainda assim, a alta incidência da depressão na Vigitel deve ser lida com cuidado: as pessoas responderam se já haviam sido diagnosticadas ao longo da vida, e não se estavam com depressão naquele momento de pandemia, afirma Marcelo Fleck, coordenador do ambulatório de Depressão do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e professor de Psiquiatria na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele destaca que Porto Alegre tem altos índices de depressão, mas pondera que o número de deprimidos pode não ser tão maior do que em outras capitais por duas razões: a cidade tem um dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) mais fortes do país e é reconhecida nacionalmente por treinar profissionais em saúde mental com excelência - fatores que facilitam o diagnóstico da população.
- Os dados detectam depressão, mas também qualidade do serviço médico. Pode ser que, em outra capital, a pessoa esteja deprimida, mas ninguém detectou. Os médicos daqui podem detectar melhor do que em outros Estados porque o sistema de saúde está mais organizado - pontua Fleck.
A hipótese conversa com os dados da pesquisa. As capitais com mais pessoas relatando depressão são mais ricas e com sistemas de saúde robustos: Porto Alegre, Belo Horizonte e Florianópolis. Na outra ponta, as capitais com menos diagnóstico foram Salvador, São Luís e Belém, conhecidas pela maior desigualdade social.
- Todas as doenças que exigem diagnóstico têm relação estreita com a presença de serviços de saúde: onde ha mais serviços, há mais diagnósticos. Um pouco da discrepância entre as cidades se deve a isso, o que não sabemos é o quanto dos dados se deve à falta de diagnóstico - afirma o coordenador da coleta de dados da Vigitel, Rafael Moreira Claro, professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Conforme a cobertura vacinal aumentou e a covid-19 abrandou, a advogada Bárbara sentiu uma melhora na saúde mental. Para além de retomar perspectivas de futuro, não está mais, obrigatoriamente, sozinha: se precisa de ajuda e companhia, agora pode buscar o conforto de familiares e amigos, o que lhe era vedado antes, pelo medo de contaminação.
- A companhia e disponibilidade das pessoas é muito bom para mim, isso de saber que tenho uma rede de apoio. Antes, eu não queria me expor nem expor os outros. Talvez a intensidade das crises continue a mesma hoje, mas elas estão mais fáceis de resolver porque tenho para onde recorrer - diz Bárbara.
MARCEL HARTMANN
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