sábado, 14 de maio de 2022


14 DE MAIO DE 2022
J.J. CAMARGO

O QUANTO PRECISAMOS TER

"A comparação é a morte da alegria."

(Mark Twain)

Era uma manhã de inverno, e o Jacinto mantinha o cobertor grosso puxado até o pescoço. Tinha internado dois dias antes para tratar um câncer de pulmão em estágio avançado. Fui chamado pela esposa, que tínhamos operado no final dos anos 1990, para dar uma olhada no marido, e a encontrei no corredor, com olhos chorados:

- Dê uma força, doutor, ele tá sofrendo muito. Ele não quer falar, mas a enfermeira me disse que ele não tem dormido.

O sorriso escancarado da recepção sucumbiu à tristeza quando ele me atualizou:

- Mas bah, meu doutor, fui atiçar as verdades com o médico e me dei mal. Quis saber se ele achava que meu câncer tinha chance de cura e ele disse que não. Então me arrisquei um pouco mais e quis saber se eu devia ter esperanças de voltar para casa, e ele disse não, outra vez. Mesmo valente como um fronteirista que sou, não me animei a perguntar quanto tempo de vida eu teria, de medo que ele me dissesse. E ele respondeu tudo enquanto escrevia, e sabe que o especial nem me olhou!?

Ficamos um tempo de mãos dadas, e então ele fez um pedido que resumia o que lhe bastava, agora que não havia o que mais esperar:

- Me consiga um lugar para a minha velha ficar aqui por perto. Esta cama é boa e me tratam bem, mas eu não quero morrer sozinho.

As prioridades que anunciamos para os últimos dias traduzirão linearmente o modelo de vida que vivemos ou ostentamos. Muitos de nós pensamos felicidade com exigências que não correspondem às aspirações das pessoas comuns. Alguns anos atrás, a propósito do título de um dos meus livros, duas repórteres fizeram uma pesquisa entrevistando pessoas na rua com a pergunta "do que você precisa para ser feliz?". Ninguém disse que gostaria de ser feliz se tornando famoso ou ganhando na loteria. Ter saúde, um emprego que permitisse dar segurança à família, poder encaminhar os filhos para uma vida digna, isso já seria mais do que suficiente. Houve até um negro velho, cabeça grisalha, com uma cara boa, dessas que sempre me dá vontade de passar a mão, que confessou estar pronto para ser feliz, mas se pudesse fazer um pedido bem simples, seria convencer a negra velha a não lhe encher tanto o saco.

Certamente, se essa mesma pesquisa fosse levada à classe mais alta da sociedade, o índice de satisfação seria muito mais baixo. E o rol de necessidades para uma pretensa felicidade infinitamente maior na comparação com as pessoas mais humildes, que se contentam com o que têm, porque nunca tiveram a possibilidade nem de imaginar o que seria possível ter.

Aparentemente, de tanto querer o desnecessário, acabamos perdendo o que sempre esteve ao alcance da mão, mas que por estar assim, oferecido, foi ignorado. Isso também ocorre no plano material, onde coisas não necessariamente melhores despertam a cobiça dos consumistas, simplesmente por serem mais caras.

Na essência, o pequeno percentual da população que tem acesso a todas as portas que a riqueza abre espontaneamente está contaminado por dois paraefeitos acoplados à ambição: a insaciedade e a comparação. Infelizmente, quem fizer da vida a busca da superação nesses dois quesitos poderá até despertar a inveja dos incautos, mas intimamente, se viver o suficiente, lamentará o equívoco na escolha das prioridades.

Com o mundo repleto de exemplos, parece recomendável que se quisermos monitorar o nosso projeto de vida como gerador potencial de felicidade, temos que incluir humanismo nesta checklist. As figuras mais reverenciáveis da história sempre foram identificados pela preocupação com o outro. Enquanto os ególatras, enclausurados na redoma da autossuficiência, podem até ter angariado riquezas, mas experimentarão no fim da vida a amargura da solidão plena, aquela que ainda consegue ser requintada pela companhia mal disfarçada dos interesseiros.

J.J. CAMARGO

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