21 DE MAIO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL
AFRODITE-SE
Afroditar seria um belo verbo, em que se impõe o poder da deusa do amor: Afrodite, se quiser. Sua origem une Oriente e Ocidente e também amor e guerra, partes que hoje se opõem mas que foram outrora poderes de uma deusa suméria, Innana, que conquista e une, Ishtar de acadianos, Astarté de fenícios, que na ilha de Chipre tornou-se Afrodite, a cípria. Desde a origem ela traz consigo um astro, Vênus, que entre latinos lhe dá nome e aparece em joia brilhante, em tiara dourada. Por vezes tem olhos de rubi, sempre adornada, a deusa que desposou o troiano Anquises e lhe deu o filho Eneias, que migrou e fundou a cidade eterna, dom de Vênus. Foi assim que a grande deusa singrou todas as águas do Mediterrâneo, deusa de amor e Roma, de aromas e rumos doces, que os gregos chamavam lysimelês, a solta-membros, irresistível para humanos e deuses, a força divina que vence a guerra com amor, de que tanto precisamos, sempre.
Aphrós em grego quer dizer espuma, a espuma leitosa dos machos, que se confunde com a espuma do mar, de onde nasceu Afrodite, na versão de Hesíodo, na Teogonia (séc. VII a.C.). Ao falar das origens do mundo e dos deuses, o poeta cantou que do Caos originário surgiram o céu, Urano, e a terra, Gaia, mas que aquele a oprimia, até que um filho insurgente, Cronos, armado pela mãe, fez tocaia e ao poente, quando o céu se punha sobre a terra, o castrou com foice afiada; do sangue nasceram deusas vingativas, Erínias, e do esperma no mar surgiu Afrodite, que vagou nas ondas até chegar a Paphos, em Chipre, sua praia e um de seus belos santuários.
Essa Afrodite é cósmica, surge nas origens, traz um pedaço do céu e é curativo para muitos males. Afrodite tem poder gregário, une e dá vida a tudo, às formas separadas, ao que se opõe, aos corpos dos seres vivos e também às partes da cidade, que de algum modo devem unir-se, para que todos sobrevivam. Há uma Afrodite também política, que faz da persuasão (peithós) uma forma da sedução, em que cidadãos e cidadãs encantam-se por novas e belas ideias, e o fazem conversando e chegando à imagem que a todos une, e não guerreando ou impondo reformas. Afrodite-se, e com doçura um mundo de consensos belos se fará ninho do florescimento e de frutos que a todos nutrem.
Foi de Platão que os florentinos, liderados pelo sábio Marsilio Ficino (1433-1499), cevado pelos Medici Cosimo (1389-1464) e seu neto Lorenzo (1449-1492), formaram a imagem daquela deusa que brilha nos quadros de Sandro Botticelli (1445-1510) e de outros pagãos do Renascimento. Tratavam de uma Afrodite Urânia, celestial, que oferece dons sublimes, com amor. E como os homens haviam se esquecido de Vênus? Foi quando uma doutrina erotofóbica se impôs, no século IV, no Império Romano, e agrediu a deusa dos sorrisos e prazeres, destruiu-lhe templos e imagens, combateu culturas do amor, para grande trauma da humanidade, e para impor a estranha imagem de uma deusa que procria sem copular; mas mesmo os que em moralismos pudicos combatem a força de Eros, só podem vir ao mundo e nele bem viver pelo poder de Afrodite. Afroditemo-nos, pois!
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