28 DE MAIO DE 2022
DAVID COIMBRA
A despedida de David
Em seu curto retorno às atividades diárias, retomadas em 16 de maio, David Coimbra publicou suas últimas nove crônicas. As derradeiras palavras de David podem ser lidas cada uma em seu texto de origem, mas também podem formar um relato único de suas dores, aprendizados e resignação diante da incerteza do dia seguinte. Compõem, ainda, uma despedida discreta e elegante, por vezes quase cifrada, da vida que tanto amou.
Pinçados e recombinados, esses parágrafos ilustram a grandeza do cronista diante da ideia da própria finitude e deixam uma lição de serenidade, beleza e autoconhecimento forjado diante da doença. Zero Hora publica, na coluna que marca o adeus de David Coimbra desta página, mas jamais da companhia de seus leitores, o legado final de um dos maiores jornalistas gaúchos.
"Eu quis morrer. Não se trata de figura de linguagem, estou falando sério: queria não existir mais. Refiro-me a esse tempo em que passei sofrendo (...). Foi exatamente essa reunião da fraqueza com as dores e com o mal-estar, todos agindo de forma permanente, que me tirou a vontade de viver (...).
Não vou aborrecer o leitor detalhando todos os males por que passei. Conto apenas que houve um momento em que fechei a porta do quarto, me encolhi na cama e de lá não saí por dois dias e duas noites. Não comia, não tomava banho, não olhava o celular, não fazia nada além de dormir em posição fetal. No final da tarde do terceiro dia é que me levantei e tentei comer algo.
Mas agora estou melhor. Cheio de traumas de guerra, todo lanhado e escalavrado, com algumas dores ainda, mas melhor. (...) Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa."
(Quando quis morrer, publicada em 16/5)
"Quando você está encerrado em casa por causa de uma doença, os piores dias são os mais bonitos. Aquela tarde de sol gloriosa, os passarinhos cantando a alegria de estar vivo, o céu azul convidando a sentir as amenidades do clima, e eu não posso.
Imagino que todos os meus amigos agora estejam celebrando. Estão rindo, fazendo brindes, atirando-se nas ondas do mar. E eu aqui. Eles me esqueceram. Maldita solidão. Maldita doença, que me torna incapaz de sorver o bom da vida.
Mas aí, no dia seguinte, o céu enfeia, tudo fica escuro e até chove um pouco. Os amigos ligam e suspiram:
- Que vontade de estar em casa, comendo bolinho de chuva.
E eu me sinto bem, porque é o que estou fazendo. Quer dizer: quase é o que estou fazendo. Estou em casa, mas não tem bolinho de chuva porque minha vó e minha mãe não apareceram para cozinhar. O bolinho de chuva é um dos diamantes da minha infância. Esfriava um pouco e lá ia a minha avó fazer bolinho de chuva. Mas essa é uma graça que só cabe a quem tem menos de 14 anos de idade. Porque o bolinho de chuva serve para divertir, não para alimentar."
(Comida de gente séria, publicada em 18/5)
"Então, fiz 60 anos. Sessentão. Idoso. Mas, na minha cabeça, tenho outra idade. O corpo anda alquebrado de tanta luta, e na cabeça tenho entre 35 e 45 anos. O espelho confirma isso. Olho-me no espelho e vejo um cara bonitão, grisalho, experiente, com personalidade. Quando me vejo em filmes ou fotos, estremeço. De onde vieram tantos cabelos brancos? E essas rugas? Credo.
Se você for escrever a biografia de alguém, qual é a foto que será publicada na capa do livro? Essa é a foto que representa a vida da pessoa, era ali que ela devia ter ficado para sempre. Por exemplo: Pelé é o da Copa de 70, Churchill, Roosevelt e Hitler são os da Segunda Guerra, Marilyn é a do filme O Pecado Mora ao Lado. (...)
Os cientistas calculam que, até hoje, mais de 100 bilhões de pessoas viveram debaixo do sol. Hoje, onde elas estão? E eu, onde estava quando Julio César atravessou o Rubicão, quando Maomé II derrubou as muralhas de Constantinopla, quando Rasputin comeu uma caixa inteira de bombons envenenados e sobreviveu? Eu não estava vivo. Eu não vivi por milhares de anos da civilização e por milhões de anos do nomadismo. E sei que não estarei vivo depois, por outros milhares e milhões de anos. Coube-me esse pedacinho e já consumi 60 anos do meu quinhão. Oh, amigos, resta-me pouco. Então, não vou me importar com o que não tem importância. Nem mesmo com a imagem falsa das fotos e filmes de agora. Sou um ser humano existindo, "sendo", como são os bichos. Mais tarde, quando deixar de existir, vocês decidem que foto fui eu."
(Pulei fora dos 60, publicada em 24/5)
"É preciso envelhecer com dignidade, afinal, sem essas vaidades de pintar o cabelo e outros que tais. Você haverá de entender que não tem mais aquela elasticidade e que começará a se preocupar com coisas nas quais antes nem pensava, como as articulações. Você terá de mudar.
Dormir mais cedo. Beber menos. Comer menos também. Nas atividades físicas e também nas amorosas, nada de acrobacias. Pensando bem, nada de acrobacias em nenhuma atividade. Esporte? O xadrez. Emoções? As literárias. O que nós queremos, nós que nos aproximamos da idade provecta, é paz e um plano de saúde confiável.
Sei que, falando assim, tudo parece sombrio, mas há uma vantagem. Uma só. E não é essa tolice de "melhor idade". Também não é a experiência. Nada disso. É a vantagem da madureza passa por algo que citei acima: as críticas. O homem mais velho, se sorveu com sabedoria o tempo que lhe coube, pouco se importa com elas. Ele sabe que tem de ser quem é, a despeito do que querem que ele seja."
(O que o sapato diz sobre quem você é, de 20/5).
"Se eu fosse um condor, eu não voaria para os Andes, eu ficaria por aqui mesmo, nas cidades tumultuadas do Brasil. No entanto, voaria alto, bem alto e, lá em cima, ficaria planando preguiçosamente. Ficaria olhando o movimento dos carros que rodam entre as artérias de cimento da cidade e as pessoas atarefadas, indo a algum lugar - as pessoas sempre estão indo a algum lugar.
Mas eu, estando tão alto, não me importaria para onde fossem, nem com o que estavam pensando ou debatendo. Elas seriam apenas pessoas, para mim. Todas iguais. Elas não teriam mais problemas ou preocupações. Não teriam opinião, nem teses a defender. Só estavam ali para existir. Mas se, de repente, dois ou três humanos se desentendessem por alguma razão trivial, como o trânsito, e começassem a brigar, eu bateria as asas e subiria um pouco mais. Olharia para aqueles pontinhos lá em baixo e sorriria de prazer. A vida aqui em cima é tão pacífica..."
(Gosto das pessoas que se transformam em bichos em "Pantanal", de 17/5)
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