05 DE NOVEMBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS
SHOW DE CASUÍSMO
Escudada na desculpa de ajudar os mais necessitados, a Câmara dos Deputados deu um passo que mina a credibilidade do país e cria mais incertezas sobre a saúde das finanças públicas nos próximos anos. Com a aprovação em primeiro turno, na madrugada de ontem, da chamada PEC dos Precatórios, os parlamentares colocaram abaixo o teto de gastos, pedalaram parte das dívidas do Executivo já reconhecidas pela Justiça e que deveriam ser inexoravelmente pagas no ano que vem e abriram espaço para aumentar gastos de cunho eleitoreiro, beneficiando governo, centrão e aliados, de olho no pleito de 2022. Um show de casuísmo e oportunismo populista, falsamente justificado com objetivos nobres.
Diante dos índices de desemprego ainda altos e da inflação acima de 10% no intervalo de 12 meses, não resta dúvida de que é justa e devida a construção de um auxílio que ampare as famílias mais carentes. Mas economistas e especialistas em contas públicas fizeram, nos últimos meses, reiterados e pormenorizados diagnósticos mostrando que era possível manter um programa de transferência de renda consistente sem demolir o mecanismo que, ao limitar o aumento dos gastos de um ano para outro à variação da inflação, era a grande âncora fiscal do país e, nos últimos anos, contribuiu para a melhoria de indicadores macroeconômicos, como a redução do juro.
Se a verdadeira intenção fosse mesmo socorrer os pobres, sem riscos de este mesmo estrato da sociedade ser atingido pelos efeitos colaterais de uma desorganização das finanças, bastava abrir mão de parte das gordas emendas parlamentares, muitas delas sem qualquer transparência, cortar ao menos alguns subsídios ineficientes e reduzir os recursos também bilionários dos fundos que serão utilizados nas campanhas em 2022. Ao desconsiderarem a saída mais responsável, governo e centrão mostraram estar, em primeiro lugar, preocupados com a própria sobrevivência eleitoral.
Estima-se que a proposta de emenda à Constituição aprovada ontem por escassa margem possa abrir espaço de R$ 91 bilhões no orçamento. Assim, além de assegurar parcelas de R$ 400 no chamado Auxílio Brasil, sendo R$ 100 fora do teto, abre-se o caminho para engordar anda mais o montante destinado a emendas e ao fundão. Trata-se de um verdadeiro deboche aos brasileiros. Ao longo das negociações, até o governo alcançar 312 votos, apenas quatro a mais do que os necessários, viu-se de tudo um pouco.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, usou manobras regimentais duvidosas e permitiu algo que, há poucos dias, rechaçava: o voto remoto de deputados ausentes da Câmara, como os que estavam no Exterior. O PSDB, que se autointitulava espécie de pai da responsabilidade fiscal, deu ampla maioria à causa de Lira e do governo. O PT, crítico do teto e sempre favorável à expansão da despesa pública, posou, ao fim, como defensor do mecanismo, mesmo que o verdadeiro objetivo fosse evitar os benefícios eleitorais da gastança para seus adversários políticos.
O reflexo imediato da votação na Câmara, como se esperava, foi a continuidade do movimento de queda da bolsa e de alta do dólar e dos juros futuros. Arrisca-se, em nome de interesses de um pequeno grupo, alimentar um desarranjo que se traduzirá em persistência da inflação elevada e escalada da Selic, com consequências lesivas à economia e ao emprego. Os mesmos que receberão o auxílio do governo sentirão os efeitos perversos das artimanhas que viabilizaram o programa, caso a proposta avance. Como ainda haverá votação em segundo turno na próxima semana, parte dos deputados ainda pode refletir e mudar de posição. A próxima barreira é o Senado. Ainda há como deter a irresponsabilidade.
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