sexta-feira, 5 de novembro de 2021


05 DE NOVEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

As traições do cérebro

Tenho de reler Rumo à Estação Finlândia. É um prazer requintado você pegar um livro importante do seu passado e lê-lo em circunstâncias diferentes, quando a sua cabeça e o seu mundo não são mais os mesmos. O problema é que os livros vão se sobrepondo, e você vai deixando a releitura para trás. Mas farei isso. Ah, farei.

Rumo à Estação Finlândia é um clássico, uma obra-prima do grande Edmund Wilson, um dos meus autores preferidos em todos os tempos, um homem que, aliás, dizia que nunca se pode ler o mesmo livro duas vezes, exatamente porque o leitor se modificou. Edmund Wilson era um Heráclito.

Quando estive em Moscou, fiz questão de visitar a Estação Finlândia só para homenageá-lo. Detive-me diante da estátua de Lênin e fiz uma saudação ao imenso escritor americano.

O pai de Edmund Wilson também se chamava Edmund Wilson. Era um advogado talentoso, porém neurótico. Edmund Wilson Sênior era tão hipocondríaco que convenceu os médicos a lhe retirarem a vesícula, porque tinha certeza de que se sentia doente por causa dela. Como a vesícula estava saudável, ele continuou mal. Então, foi responsabilizando outros órgãos, que mandava extrair sem piedade. Depois de três cirurgias, temendo que ele arrancasse mais pedaços do próprio corpo, a família decidiu intervir e o levou a um eminente neurologista de Londres. O médico examinou criteriosamente Edmund Sênior e, em seguida, chamou a esposa dele, Helen Wilson. Disse-lhe sem preparação nem rodeios, como é hábito dos médicos anglo-saxões:

- O seu marido é louco.

Tomada de surpresa e horror, Helen saiu caminhando trôpega do consultório e, dias mais tarde, ficou surda. Nenhum médico jamais encontrou algo de errado em seus ouvidos. A surdez de Helen era traumática. Até o fim de sua vida, nunca mais ouviria notícias ruins.

Essa história dos pais de Edmund Wilson sempre me fascinou, por demonstrar sobejamente a força do nosso cérebro. Ele, o cérebro, está preso ao corpo e, ao mesmo tempo, está apartado do corpo. Toma decisões próprias sem nos consultar. Nem pode ser chamado de cérebro, porque ele não é racional. É o subconsciente descoberto por Freud, tão poderoso que nos obriga a fazer coisas que não queremos fazer, que usa o nosso corpo sem nosso consentimento e que às vezes nos sabota como se fosse um inimigo.

Foi essa camada inferior e poderosa de Helen que resolveu: "Não aguento mais sofrer, não quero mais ouvir algo que me faça mal". Depois dessa deliberação, o cérebro de Helen desligou sua audição. Ele tinha a chave. Ele é quem mandava.

Medo de desejos inconfessos, medo da dor e da perda, medo da mudança, medo, medo, o nosso cérebro tem muito medo, está sempre tentando se preservar e se precaver, fugir ou se esconder, e é esse sentimento que, se não for bem examinado e compreendido, pode nos controlar.

Mas o que faz o medo diminuir e até desaparecer?

O enfrentamento do medo. É quando você vai lá, faz o que tem de fazer e mostra ao cérebro: "Viu? Deu tudo certo. Não precisa sentir medo!".

É o que tem de ser demonstrado aos jogadores do Grêmio hoje. Alguém haverá de lhes dizer: "Continuem fazendo o que vocês acham que é certo, vai funcionar. Não tenham medo". Pode dar resultado. Ainda há forças, ainda há tempo.

DAVID COIMBRA

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