03 DE ABRIL DE 2021
LYA LUFT
Doutor Arthur
Meu pai, doutor Arthur ou doutor Fett, que estaria fazendo nestes dias 116 anos, foi por muito tempo meu deus. Rigoroso em algumas coisas, como escola, onde depois dos 11 anos comecei a ficar incrivelmente medíocre e desinteressada, horários de chegada em casa, e respeito à mãe, com quem eu tinha seguidas discussões tolas de adolescente, foi a pessoa mais generosa, bondosa, sábia que conheci.
Tinha uma inata alegria de viver, mas uma certa melancolia; gostava de reunir amigos e família, cuidava de quem podia cuidar, era gentil e atencioso com empregados domésticos e funcionários da faculdade de Direito, que ajudou a fundar e dirigiu até o fim. Quem quer que fosse, e nunca o vi bajular ninguém. Talvez esse seja o conceito de dignidade que eu mais conheço.
Amigos da família me contaram, anos atrás, que era bonito ver o doutor Arthur trazendo pela mão a filhinha ainda pequena, para que ficasse brincando nos balanços da praça da prefeitura e do fórum. Outros tempos, claro, em que se podia deixar uma criança brincando sozinha, desde que sob o olhar vigilante do pai, que a cada momento aparecia na janela.
Quando fiquei adolescente, ele não se conformava com minha notas ruins na escola, e me dizia o mesmo que o diretor: "Você é inteligente mas preguiçosa, desinteressada. Com um pouquinho de esforço, poderia ser sempre a primeira da aula". Para que eu quereria ser a primeira da aula? Queria ser a mais amada, a mais engraçada, a com mais amigos e amigas. Sobretudo, com mais e mais livros ao meu redor.
Me comovi quando um ex-aluno seu me contou que quando o foi visitar em casa, entrando no escritório, admirou-se da biblioteca que cobria todas as paredes. Meu pai, um gesto muito simples, disse apenas: "Estes são os meus amigos". Quando desisti de terminar o primeiro ano do Segundo Grau, então "Colegial", porque minhas notas em ciências exatas eram horrendas, lembro de seu olhar entre perplexo e vagamente divertido, quando me disse, "então, se você quer ficar ignorante, fique em casa e ajude as empregadas e sua mãe". Quando me chamava de você, a coisa era séria.
Fiquei em casa, sem ajudar em nada as empregadas porque, segundo minha mãe, eu só estorvava, li todos os livros, sonhei todos os sonhos, e comecei a sentir uma solidão danada. Finalmente, vim a Porto Alegre, Colégio Americano, escola Normal, e lembro das despedidas, ele beijando minha mão pela janela do ônibus, repetindo que eu me cuidasse bem. Naqueles primeiros meses eu ia para casa sempre que possível, depois, na medida em que me adaptei em Porto Alegre, ao natural as idas foram se espaçando.
Quando decidi fazer faculdade, isto é, possivelmente não voltando mais a residir em casa, ele me apoiou em todas as minhas tantas dúvidas. Sempre eu lhe perguntava sobre alguma decisão a tomar: "Acho que por aqui tem mais chance de dar certo, por ali você pode errar mais, mas seja como for, o pai está sempre aqui do teu lado". Não houve nunca mais íntimo e reconfortante sentimento de família, abrigo e proteção.
Até hoje ele nos faz falta, embora tenha morrido há muito tempo, aos 68 anos, deixando a família dolorida, aturdida. Nunca mais nada foi o mesmo. Mas ele continua aqui, comigo: quando tenho algum problema maior, instintivamente eu penso, "Pai, e agora, o que eu faço?".
De alguma forma, eu sei, ele me dará uma resposta.
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