09 DE MARÇO DE 2021
NÍLSON SOUZA
Muitas luzes
Uma das passagens mais emocionantes e emblemáticas da obra de Erico Verissimo é o trecho de Solo de Clarineta em que o escritor relembra sua experiência adolescente de ter que segurar uma lâmpada elétrica na mesa de operações da farmácia de seu pai enquanto o médico remendava um sujeito estropiado. Ele conta que superou o horror e a náusea pensando que iluminar a improvisada cirurgia não era nada comparado às dores do ferido. E conclui brilhantemente:
"Desde que, adulto, comecei a escrever romance, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos".
Quando passamos por situações calamitosas, a vontade de fechar os olhos é grande. Agora mesmo, ninguém aguenta mais tanta notícia ruim sobre mortes, UTIs superlotadas, corpos insepultos em contêineres e estatísticas macabras, tudo isso junto com a insensibilidade de governantes e grupos negacionistas diante da maior catástrofe humanitária da nossa geração. Ainda assim, não podemos virar o rosto, nem deixar de fazer o que nos compete nesta hora de provações. Atrevo-me a falar em nome de meus colegas jornalistas, que também sentem náuseas e traumas emocionais para apurar, divulgar e acompanhar tantos fatos deprimentes.
Porém, como escreveu Erico, esse acaba sendo um pequeno sacrifício na comparação com o sofrimento das vítimas e de seus afetos, e menor ainda diante da determinação daqueles que, mesmo sob riscos constantes, continuam segurando as lâmpadas que salvam vidas - médicas e médicos, enfermeiras e enfermeiros, fisioterapeutas, motoristas, auxiliares, servidores da limpeza, da segurança e da administração das instituições de saúde. Há ainda os trabalhadores essenciais que atuam na rede de alimentação, nas farmácias, no trânsito, na educação, no comércio, na indústria e nos serviços - todos merecedores de reconhecimento da sociedade e prioridade no nosso precário processo de imunização.
Talvez não sejamos mais do que vaga-lumes nesta prolongada noite de terror, mas, juntos, podemos iluminar o país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário