quinta-feira, 3 de agosto de 2023



03/08/2023 - 16h25min
FABRÍCIO CARPINEJAR

Deveria ter acontecido muito antes

Não diria que é um avanço, mas uma correção um tanto atrasada de um atenuante monstruoso, que permitia feminicídios por motivos torpes como ciúme e possessividade. Homens traídos se julgavam no direito de cometer vingança com as próprias mãos. Homens que não aceitavam a separação se viam com a licença para acabar com vida de suas parceiras.

Não pagavam o devido preço à Justiça por homicídio. Recebiam uma pena branda alegando legítima defesa da honra. Logo estavam soltos novamente. Quem era acusada moralmente era a mulher, caracterizada como fatal, como infiel, de conduta afrontosa à família, num discurso implícito e acintoso que buscava desqualificá-la.

O banco de réus era preenchido por um fantasma, que não estava ali para se defender. O banco de réus era ocupado por um caixão.Tal fábrica de impunidade acabou de ser fechada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu, nesta terça-feira (1º), por unanimidade, considerar inconstitucional o uso dessa tese em crimes de feminicídio.

A Corte entendeu que o uso desse argumento contraria os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.Não diria que é um avanço, mas uma correção um tanto atrasada de um atenuante monstruoso, que permitia feminicídios por motivos torpes como ciúme e possessividade.

De Maria Francelina Trenes, conhecida como Maria Degolada, alemã radicada no Rio Grande do Sul, à mineira Ângela Diniz, foram milhões de vítimas silenciadas pela violência gratuita, a partir de alegação de que não estariam se comportando devidamente, de acordo com as exigências dos seus maridos e namorados.

Lembro que o poeta Carlos Drummond de Andrade, na época do julgamento da morte de Ângela Diniz, bradou contra o argumento da passionalidade como recurso para libertar Doca Street, o assassino da socialite: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”.

É irreal que a jurisprudência se pacifique somente agora. Até então, havia o medo de terminar um relacionamento abusivo com receio de represálias, de perseguições, de atentados. Um condicionamento jurídico recompensava os crimes. Se o homem fosse adúltero e sua companhia planejasse seu fim, ela jamais teria sua condenação aplacada pelo calor dos sentimentos.

Persistia um entendimento de que a mulher era uma posse masculina, um objeto sem independência, sem autonomia, devendo prestar contas e satisfações de seus atos, confinada ao ambiente doméstico de submissão e aos cuidados da prole. Ela não desfrutava de condições de decidir seu destino amoroso, de romper legitimamente com o ex, ou mesmo de ter outros relacionamentos como quisesse, dentro ou fora do casamento — já que a conduta é uma escolha pessoal, absolutamente restrita à sua privacidade.

A dura verdade é que o divórcio, oficializado em 1977, ainda não existia diante do feminicídio.  Uma vida valia menos do que a controvertida e subjetiva reputação. Assim as chaves do machismo soltavam algemas e abriam portões dos cárceres.

A justiça tarda, e tardando ela falha. Não há como repor a existência de tantas mulheres assassinadas por crimes de honra ou, mais precisamente, por crimes de covardia. Honra foi sempre um sinônimo de covardia.

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