05 de novembro de 2014 |
N° 17974
MARTHA MEDEIROS
Relatos selvagens
O mundo é um hospício. Portanto,
deve-se congratular a maioria de nós que não aceita provocações e toca sua vida
sem entrar em confusão, deve-se aplaudir os que levam rasteiras e não partem
para o olho por olho, deve-se comemorar o fato de sermos resistentes a todos os
desaforos que nos fazem, pois se fôssemos excessivamente esquentados, raivosos
e incontroláveis, não sobraria um vivente para contar a história.
Não que tenhamos que ser
pangarés: indignar-se é da nossa natureza. Mas fazer tudo o que dá na telha,
atendendo apenas aos nossos impulsos primitivos, nos levaria a um quadro
semelhante ao mostrado no genial Relatos Selvagens, filme que está provocando
gargalhadas e reflexões: como é que aguentamos tanto estresse? Afora os
malucos, a maioria de nós é civilizada até demais.
O filme é produzido por Pedro
Almodóvar, que se encantou com o roteiro nonsense do argentino Damián Szifron,
diretor dos seis episódios independentes que constituem a obra, um deles
protagonizado por Ricardo Darín. O personagem de Darín é um engenheiro
especializado em implosões, mas que explode diante da burocracia e do
pouco-caso que os serviços públicos dispensam ao contribuinte.
Nos outros cinco episódios,
descobre-se que todos os passageiros de um avião são desafetos do piloto, uma
cozinheira de restaurante de beira de estrada induz a garçonete a envenenar um
cliente sacana, um milionário corrompe o jardineiro para que ele assuma a
autoria de um acidente que não provocou, dois motoristas se desentendem na
estrada e, por fim, o mais divertido de todos: uma noiva descobre em plena
festa de casamento que o noivo é amante de uma das convidadas.
O episódio de abertura é uma
bizarrice, mas os outros podem acontecer com qualquer um de nós, só que sabemos
a hora de interromper a cena antes de chegar às últimas consequências. O filme,
não. O filme vai até as últimas consequências sem negociar com a moral, com a
lei e com a ponderação.
Relatos Selvagens funde os
conceitos de real e irreal, abre as cancelas que confinam nossas emoções e nos
deixa cara a cara com “o que poderia ter sido”. Criativo, ousado, sua
comunicabilidade é imediata e contagiante. Apesar de absurdos, acreditamos em
cada personagem e torcemos por eles, não por serem bons, mas por apresentarem
uma demência que nos comove. A piração é tanta, que faz parecer que na tela
estão crianças enfurecidas por causa de um brinquedo quebrado. Não conseguimos
vê-los como criminosos. Tudo não passa de birra, apenas.
O filme nos ganha porque
ultrapassa nosso espanto racional e adulto até alcançar nosso riso
descompromissado e juvenil, o riso típico de quem ainda não formou senso
crítico, não tem juízo. No final das contas, toda selvageria é isso, uma volta
às origens.
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