sábado, 24 de abril de 2010



25 de abril de 2010 | N° 16316
MOACYR SCLIAR


Você não está se lembrando de mim

As pessoas em geral não perdoam o fato de serem esquecidas. Isso vale para o rosto, vale para o nome

Escrevo ficção há muitos anos. Nos meus romances e contos, figuram numerosos personagens, homens, mulheres, crianças. Pois bem: não sou capaz de descrever nenhum deles.

São criaturas absolutamente imaginárias, que estão no texto apenas para justificar o jogo de palavras que, ao fim e ao cabo, são a verdadeira realidade do ficcionista. As palavras, eu as conheço e as reconheço.

Tudo que preciso fazer, quando escrevo, é convocá-las lá do compartimento mental em que ficam, à espera paciente do chamado. E, quando se apresentam, não tenho o menor problema em identificá-las e em colocá-las no lugar certo.

A dificuldade em identificar personagens estende-se à realidade. Sou péssimo fisionomista; mais, sou péssimo em lembrar nomes. E isso é uma desgraça. As pessoas, com toda a razão, não perdoam esse tipo de esquecimento.

Daí resulta uma frase que sempre me deixa humilhado e consternado: “Você não está se lembrando de mim” (ou: “Tu não estás te lembrando de mim”, no caso do RS. É a mesma coisa, só varia a geografia).

Notem, não se trata de uma constatação, não é um comentário despreocupado e muito menos alegre. É uma acusação, uma magoada acusação. As pessoas em geral não perdoam o fato de serem esquecidas. Isso vale para o rosto, vale para o nome; é desagradável, por exemplo, ver o nosso nome grafado de forma errada. A mágoa tem uma dupla origem.

De um lado, e quando se trata de alguém que não vemos há muito tempo, a pessoa pensa: “Deus, devo ter envelhecido tanto que esse cara nem me reconhece”. Mas, mesmo quando se trata de esquecimento puro e simples, o interlocutor não desculpa.

Poderia cogitar de Alzheimer, por exemplo, o que forçosamente faria com que tivesse pena do esquecido; mas não, Alzheimer algum justifica essa falta. O raciocínio da pessoa é outro: esse sujeito me esqueceu porque não tenho importância para ele, não sou um político, um intelectual, um empresário, um profissional bem-sucedido; não sou ninguém.

Tal ressentimento é avassalador. Nunca esqueço (“nunca esqueço” é boa, ao menos neste contexto) uma história que me contou o poeta Ferreira Gullar, que é de São Luís do Maranhão, mas mora no Rio.

Uma vez voltou a sua cidade natal para lá autografar um livro. Na fila, estava alguém que havia sido muito importante em sua vida: o diretor do jornal para o qual trabalhara. Só que Gullar não lembrava o nome desse homem.

A fila avançava, e nada da memória funcionar. Por fim, ali estava o diretor a sua frente. Ferreira Gullar foi obrigado a confessar o esquecimento. Resposta do homem: “Você não lembra agora. Quando precisava de mim, você lembrava”. Virou as costas e foi embora.

Histórias como essa nos dão inveja dos políticos. Ouvi dizer que Paulo Maluf foi a uma convenção partidária em que havia mais de mil participantes. Ele sabia o nome de todos – e de suas mulheres (ou equivalentes). Alguém dirá: mas isso é uma coisa calculista, interesseira. Pode ser. Mas que funciona, funciona.

Certo, existem técnicas destinadas a corrigir este problema, ou, ao menos diminuí-lo. Mas, para os maus fisionomistas, tais técnicas, não servem de consolo. Elas não respondem à pergunta crucial: por que esqueci a fisionomia e/ou o nome de uma determinada pessoa? A psicanálise verá nisso o resultado de um conflito inconsciente.

Mas identificar o conflito nem sempre melhora a memória do esquecido. Mas a solução virá. Por intervenção divina: no Céu, todo mundo terá de usar crachá, com o nome em letras garrafais. E aí a frase “Você não está se lembrando de mim” será apenas uma lembrança, mesmo que inesquecível, do passado.

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