sábado, 10 de abril de 2010



10 de abril de 2010 | N° 16301
CLÁUDIA LAITANO


Sob a cerração

Neblina, névoa, nevoeiro, fog: quatro palavras com o mesmo significado e nenhuma delas serve para descrever um dia branco e difuso de um típico inverno gaúcho. A linguagem é assim, utilitária na aparência, mas cheia de conexões invisíveis – com a nossa história, nosso lugar no planeta, nossas pequenas nostalgias particulares.

É por isso que para a maioria de nós, nascidos neste lado de cá do mundo, “neblina” é apenas o nome de um fenômeno meteorológico. É preciso dizer “cerração” para que o sentido da palavra se espatife em milhares de cacos de memórias igualmente difusas – manhãs dos tempos de escola, madrugadas prolongadas, um domingo que amanheceu frio, mas com promessa de sol e céu azul para um passeio no fim da tarde.

O filme Os Famosos e os Duendes da Morte, premiado nos festivais do Rio e de Punta e exibido este ano em Berlim, tem muitos méritos, mas o menos comentado talvez seja o de reunir algumas das mais belas cenas de cerração já vistas no cinema. E digo cerração, e não neblina ou fog, porque o filme foi rodado no Vale do Taquari.

Trata-se de um filme “sensorial”, se é que existe esse gênero, em que a história importa menos do que o ambiente para o qual ele nos transporta, uma cidade pequena do Interior, que poderia ser qualquer uma, mas calha de nos ser familiar pela paisagem, pelo clima e pelo sotaque da gente alemoa que povoa o lugar – filmados com delicadeza extrema e distanciamento na medida pelo paulista Esmir Filho.

O diretor encontrou no livro do gaúcho Ismael Canepelle a definição de adolescência que o atraiu para a história: “Viver no lugar em que você nasceu, porém sentindo que aquele não é o seu lugar”.

O personagem principal é um garoto de 16 anos, fã de Bob Dylan, que se relaciona com o mundo por meio da internet – como a maioria dos meninos e meninas da sua idade, seja no Vale do Taquari ou do Reno. A cidade pequena em que ele mora às vezes parece bucólica, às vezes limitada.

Viver perto da família às vezes é aconchegante, noutras sufoca. O próprio personagem principal oscila entre o final da infância e o início da vida adulta, e toda essa instabilidade não poderia ter uma tradução visual mais apropriada do que a cerração que confunde os olhos e borra o horizonte.

Um dos elementos centrais do filme é a ponte de madeira onde se dá o desfecho da história. Uma ponte que pode ter muitos significados dentro da história, inclusive o de ressaltar essa ligação inédita que a internet proporciona entre a vizinhança interiorana mais remota e a metrópole.

Esse menino de Lajeado que vai de bíci pra escola e fala “tu”com aquele sotaque que nos soa tão familiar tem que decidir a que lado da ponte ele pertence, como tantos antes dele.

A diferença é que “o outro lado do rio”, o universo que ele sonha explorar, tem uma embaixada instalada ao lado da sua cama: o mundo imaterial e virtualmente sem fronteiras dos relacionamentos que se estabelecem na rede.

PS: a atriz gaúcha Áurea Baptista, comovente no papel da mãe do protagonista, é um talento local daqueles que merecem estátua na Praça da Matriz por ainda não terem cruzado a ponte.

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