quarta-feira, 14 de abril de 2010



14 de abril de 2010 | N° 16305
DAVID COIMBRA


Quem sabe faz a hora

O filho de Zuzu Angel, os torturadores do regime militar o amarraram à traseira de um jipe, acoplaram-lhe a boca à saída do cano de descarga e o arrastaram pelo pátio da Base Aérea do Galeão. Morreu esfolado e asfixiado por gases tóxicos. Trabalho concluído, os militares jogaram o corpo em um helicóptero, voaram até alto mar e lá o atiraram. A busca da mãe pelo cadáver do filho gerou uma emocionante música de Chico Buarque, “Angélica”, e um filme recente de boa qualidade.

Hoje muitos brasileiros protestam quando alguém lembra de fatos que tais – brasileiros com filhos gozando de boa saúde, provavelmente. Porém, mesmo correndo o risco de ser tachado de revanchista, asseguro: essas coisas aconteciam no Brasil, e não faz muito. Por isso ninguém se surpreendeu quando, nos anos 70, surgiu a notícia de que haviam castrado Geraldo Vandré. Pudera: as letras das músicas que ele compunha eram soda cáustica derramada nos ouvidos dos próceres do regime.

Minha preferida é “Disparada”, vencedora do Festival de Música de 1966 junto com “A Banda”, do Chico, no concurso embalada pela vozinha suave de Nara Leão. Vá no Youtube, o mundo inteiro está no Youtube e lá também está um dos maiores intérpretes da MPB, Jair Rodrigues, cantando “Disparada” na final do Festival. Jair sempre foi um pândego, um gozador que interpretava seus sambas às gargalhadas.

Por esta razão, Vandré não queria entregar-lhe “Disparada”, uma música grave, de protesto. Mas Jair conta que, já no ensaio, quando começou a entoar os primeiros versos, “Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar...”, uma força estranha se lhe apossou de corpo e alma, e ele se sentiu um herói do sertão, braço firme, laço forte, de um reino que não tem rei.

Insisto: veja a gravação. Atrás de Jair, um sujeito de smoking bate numa queixada de boi, marcando com força o ritmo da melodia. O público observa em preto e branco, entre embasbacado e exultante. No final grandioso, Nara Leão e Chico Buarque se aproximam de Jair e o ladeiam, ela sorrindo, ele compenetrado.

É histórico.

A música mais conhecida de Vandré, no entanto, é a segunda colocada do Festival de dois anos subsequentes, “Pra não dizer que não falei de flores”. Como é que os militares iam gostar de uma letra que dizia

“Há soldados armados, amados ou não

Quase todos perdidos, de armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam a antiga lição

De morrer pela pátria e viver sem razão”?

Logo, nada mais natural que Vandré fosse brutamente torturado e mutilado, como se especulou. Mas, quando ele voltou do exílio, que foi exilado, voltou outro. Negou que tivesse sido preso ou torturado, jurou que mantinha sua integridade física, fez inexplicáveis elogios aos militares e compôs uma música em homenagem à FAB: “Fabiana”.

Como podia? Houve quem dissesse que a tortura lhe roubara a razão, no que eu aqui, incrédulo, acredito.

Hoje Vandré tem 75 anos, vive recluso em um apartamento sombrio de São Paulo, não tem mulher ou filhos, não dá entrevistas, não assiste à TV, só ouve música clássica. Hoje sua composição mais famosa e mais contundente, “Pra não dizer que não falei de flores”, motiva o vestiário do Pelotas antes dos jogos do Gauchão.

Já enfureceu militares, já fez os verdugos do regime polirem suas pinças, já arrepiou a nação, agora embala vitórias em campos de futebol. Outros tempos. Felizmente.

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