sábado, 10 de abril de 2010



10 de abril de 2010 | N° 16301
A CENA MÉDICA | MOACYR SCLIAR


Talidomida: a coragem de dizer não

Neste domingo Zero Hora dará uma ampla reportagem sobre talidomina. Isso me lembra que uma das minhas primeiras tarefas na área de saúde pública foi proceder a um levantamento dos casos de lesões produzidas pela talidomida no Rio Grande do Sul. O objetivo era conhecer o problema no Estado e também fornecer subsídios ao processo judicial que estava sendo iniciado pelas famílias contra a indústria farmacêutica.

Foi, devo dizer, uma experiência sombria, ainda que eu tivesse me restringido basicamente a documentos e a fotos das pessoas afetadas. Nessa ocasião, li tudo o que podia acerca desse tenebroso episódio. E foi assim que cheguei à singular, heroica, figura da dra. Frances Oldham Kelsey.

A talidomida tinha sido introduzida na Europa pelo laboratório Grünenthal, como uma “droga mágica” contra náusea, dores de cabeça e, sobretudo, insônia. Era especialmente indicada para gestantes porque combateria o enjoo da gravidez, e amplamente usada nos países europeus.

Mas não nos Estados Unidos. E é aí que entra a dra. Kelsey. Canadense de nascimento, a dra. Kelsey resolveu dedicar-se à farmacologia e para isso candidatou-se a uma vaga na Universidade de Chicago.

O titular do departamento aceitou-a, achando que se tratasse de um homem (ele não queria mulheres no seu Clube do Bolinha). Foi aceita e depois contratada pelo Food and Drug Administration (FDA, a Anvisa dos Estados Unidos). De imediato, mostrou que o solvente de um preparado à base de sulfa tinha causado dezenas de mortes.

Foi no FDA que a dra. Kelsey teve sua atenção despertada para a questão da talidomida. Caberia a ela liberar a droga. Apesar da pressão do fabricante americano, não o fez.

Vários aspectos intrigavam-na, a começar pelo fato de que os efeitos em animais de laboratório eram diferentes daqueles que ocorriam em humanos. Queria testes mais acurados, e sua exigência provou-se dramaticamente correta quando, no começo dos anos 60, surgiram os relatos de malformações fetais causadas pela talidomida.

É preciso dizer que a imprensa americana fez o devido barulho, e uma nova legislação foi aprovada pelo Congresso, com exigências mais rígidas acerca da segurança de medicamentos. A dra. Kelsey recebeu das mãos do então presidente John Kennedy a mais alta condecoração por mérito no serviço público.

Àquela atura já existiam entre 10 e 20 mil casos de lesões pela droga, que incluíam basicamente a focomelia, uma atrofia congênita dos braços e das pernas.

É raro encontrar uma pessoa mais coerente e corajosa do que a dra. Frances Oldham Kelsey. Pessoas como ela são, contudo, extremamente necessárias, sobretudo numa área em que interesses privados convivem, não raro de forma obscura e perigosa, com a saúde de pessoas praticamente indefesas. A biografia da dra. Kelsey deveria ser um texto obrigatório nos cursos que formam profissionais da área da saúde.

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