sábado, 24 de abril de 2010



24 de abril de 2010 | N° 16315
CLÁUDIA LAITANO


Os centenários

Chega uma hora na vida em que a pessoa tem que optar entre a manteiga e a longevidade. Ou você mantém sua vidinha mais ou menos no mesmo ritmo em que ela sempre foi, incluindo aí todos os prazeres potencialmente fatais que você cultivou ao longo dos primeiros 40 ou 50 anos, ou decide engatar uma espécie de modalidade econômica de operação, apostando na utilização racional de um dos recursos mais limitados disponíveis na natureza: a sua própria vida.

O dilema da manteiga impõe-se praticamente todos os dias para quem já passou de uma determinada idade, com profundas implicações existenciais. Ele se instala nos momentos em que estamos mais distraídos, tomando café da manhã em casa ou beliscando um pratinho de linguiça frita com os amigos.

Diante de qualquer pequeno prazer condenado pela ciência ou pelo Fantástico, cada um de nós é obrigado a fazer uma escolha, mais ou menos consciente, entre extrair o máximo do momento presente, cobrindo um pão quentinho com uma generosa camada de manteiga com sal, por exemplo, ou poupando-se na esperança de uma recompensa futura: uma vida longa e saudável. Viver intensamente ou aos pouquinhos? Cigarra ou formiguinha? Ser ou ser-com-parcimônia, eis a questão.

As duas alternativas são apostas de risco, evidentemente. Comer alface e fazer exercícios, sem prazer e por obrigação, talvez pareça uma escolha sensata, mas pode provar-se um sacrifício inútil se um cofre (real ou metafórico) cair na sua cabeça na semana que vem.

Optar pela modalidade “sem medo de ser feliz” pode parecer a opção ideal para quem não faz a mínima questão de pensar a longo prazo, mas não elimina a possibilidade de que essa pessoa venha a mudar de ideia daqui a alguns anos, quando talvez seja tarde demais para pegar leve.

Mas melhor do que chegar aos cem, ou perto deles, lúcido e produtivo é chegar lá sem nunca ter se preocupado com a quantidade de gordura trans contida no biscoito recheado – caso da geração que nasceu no início do século 20, muito antes de os cuidados com a saúde se tornarem uma mania planetária.

Esta semana, o arquiteto Oscar Niemeyer completou uma façanha de contornos épicos: viu sua criação, Brasília, chegar aos 50 anos – ele mesmo tendo chegado aos 102 no ano passado. Lady Laura, que morreu esta semana aos 96, acompanhou as comemorações dos 50 anos de carreira do filho famoso, em 2009, e despediu-se de um rei já com cabelos brancos e avô. (Duas outras mães centenárias de músicos famosos: Dona Canô, mãe de Caetano, tem 102, e dona Maria Amélia, mãe de Chico, completou cem este ano.)

Em uma entrevista recente, o tradutor Boris Schnaiderman, que acaba de lançar uma nova tradução de Tolstói, aos 92, narrou um episódio quase inacreditável: assistiu, ao vivo, aos três dias de filmagens da clássica cena da escadaria do filme Encouraçado Potemkim (1925), quando morava em Odessa, na infância. (Se ele tivesse contado que era marinheiro na Arca de Noé, acho que eu não teria ficado tão surpresa.)

Em seu delicioso livro de memórias, Meu Último Suspiro, publicado poucos meses antes de ele morrer, em 1983, e relançado este ano no Brasil, o diretor espanhol Luis Buñuel diz que não lamentaria tanto a proximidade da morte se pudesse, de vez em quando, voltar para o mundo dos vivos apenas para apanhar uma pilha de jornais e ver o que andava acontecendo.

O difícil não é morrer, é ficar sem notícias. Tchau, manteiga.

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