sábado, 6 de fevereiro de 2010



07 de fevereiro de 2010 | N° 16239
DAVID COIMBRA


Para quem entende de futebol

Todas as pessoas que eu conheço entendem de futebol.

Todas as pessoas que eu não conheço também.

Refiro-me a amigos, vizinhos, parentes, contraparentes e torcedores, leitores, ouvintes, telespectadores e taxistas e designers e consultores de empresas e presidentes da República, todo mundo fala de futebol com muita autoridade.

Muita segurança. Pudera: já jogaram ou jogam bola, acompanham as notícias dos seus times, vão ao estádio, debatem, consomem taludos nacos do dia pensando a respeito. Logo, entendem mesmo. E, com frequência, gabam-se dos seus conhecimentos. O curioso é que nunca ouvi ninguém dizer acerca de outro:

– Este entende de futebol!

O que me leva a crer que todo mundo entende de futebol, mas todo mundo acha que ninguém mais entende de futebol.

Isso, o fato de todo mundo entender de futebol, é uma aflição para quem tem de falar ou escrever sobre futebol, como este seu escravo dos erres duplos e dos cedilhas. Porque tudo que a gente escreve ou fala sobre futebol vai encontrar contestação. E contestação abalizada. Volta e meia, contestação agressiva.

É chato.

Alguém pode me contestar, dizendo:

– Vai dizer que não queria contestação!

Ao que respondo, entre melancólico e conformado: não queria...

Mas ela ocorre, paciência.

Sei que existe uma forma de esquivar-se um pouco dessa fúria contestatória. É a ardilosamente empregada pelos comentaristas esportivos e pelos técnicos. O jargão. Você fala em duas linhas de quatro, em flutuar atrás da zaga, em stopper. Você cita o ferrolho suíço e o dobrevê eme. Você arrola livros de tática escoceses. É o conhecimento exclusivo dos comentaristas e dos treinadores.

O cara olha para um jogo e enxerga movimentos premeditados, as peças se deslocando conforme uma vontade superior, as causas de tudo. O problema é que às vezes um virtuose ou um perna de pau vai lá e desmonta todo aquele edifício teórico num único lance, seja uma bola de trivela no ângulo, seja uma atrasada canhestra para o goleiro.

Uma falta de consideração a tanto estudo e formulação, mas é aí que entra a parte técnica, outra delícia dos analistas, tanto os amadores quanto os profissionais. Que prazer existe em reconhecer qualidades ou defeitos escusos em um jogador de futebol!

Verdade que se instaurou uma espécie de ética entre os analistas profissionais: a de restringir ao mínimo o exame técnico pessoal dos jogadores. Fica muito elegante, e eleva o futebol: tira o personagem de cena e faz com que cada bola na trave tenha uma razão histórica-sociológica-estratégica.

Baggio chuta o pênalti por cima do travessão e a Geração Dunga, de maldita, torna-se vitoriosa. Zico chuta o pênalti no canto, o goleiro pega, e a Geração dos anos 80, de parâmetro de virtuose, vira símbolo de fracasso.

É muito recompensador traçar as razões do fracasso ou do sucesso, sobretudo depois que ocorreram. Uma espécie de determinismo histórico de chuteiras. Mas a discussão técnica acaba sendo mais forte, porque os meninos cresceram chamando um ao outro de ruim ou de bom de bola. Então, muitas vezes a discussão elevada perde para a conclusão crua, e o analista conclui:

– Este centroavante é um pereba.

Se bem que, de uns tempos para cá, até os perebas encontraram remissão, graças a outra valência bastante admirada no futebol moderno: a tal da garra. O espírito de luta, a alma guerreira, todas aquelas referências belicosas que estão aquém do talento.

Eu aqui também dou importância à tática, à garra e à técnica, mas advirto: não muita. E agora peço que o leitor preste ainda mais atenção às frases que se derramarão linhas abaixo, porque sou como todas as pessoas que conheço: acho que entendo de futebol.

Menos por me interessar pelo tema e mais pelo tempo de convívio com o futebol profissional. Suponho que tenha aprendido algo em tantos anos. Arrogo, por exemplo, a pretensão de conseguir identificar um time vencedor, quando o vejo. E um time vencedor tem que ter algo mais do que tática engenhosa, técnica refinada e suor abundante.

Tem que ter personalidade.

Todos os times vencedores são formados por alguns, ou muitos, jogadores de personalidade forte e razoável inteligência. Cito dois: o Inter dos anos 70 tinha Figueroa, Claudio, Marinho, Falcão, Paulo César, entre outros; o Grêmio dos anos 90 tinha Adilson, Roger, Goiano, Dinho, Mauro Galvão, e tantos mais.

Este perfil é o que Mano Menezes está construindo no Corinthians. William, Roberto Carlos, Tcheco, Ronaldo e Iarley estão no clube para ganhar a Libertadores. Só. Se Mano conseguir fazer com que eles se unam em torno deste objetivo, será campeão.

Eu, imodesto como você, afirmo que não existe uma fórmula para um time de futebol tornar-se vencedor. Não, pelo menos, uma única fórmula. Existem várias.

Mas também afirmo que existe uma condição para um time ser vencedor: dentro de campo, é preciso ter algo além de técnica, tática e garra. É preciso um pouco de reflexão. Um pouco de entendimento.

Você sabe: a velha inteligência.

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