quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010



03 de fevereiro de 2010 | N° 16235
DIANA CORSO


Transmitindo sonhos

Jesse era um garoto muito problemático, fracassava nos estudos, nada parecia realmente despertar seu interesse. Seu pai, um crítico de cinema canadense, acabou propondo-lhe uma solução ímpar para seu problema: poderia largar a escola se aceitasse participar de um “clube do filme”.

Ele selecionaria três filmes por semana, programados de forma a dar ao rapaz uma ideia da sétima arte e de sua história. Jesse topou e passou a morar com o pai. Estabeleceram regras de convívio e partiram para os trabalhos no sofá da sala. David Gilmour descreveu essa experiência singular no livro Clube do Filme (Ed. Intrínseca).

É uma leitura imperdível: em primeiro lugar, porque ele nos indica uma série de títulos, dos quais aproveitamos as lições de cinema que ele dava a Jesse, nas quais ensina a ver um enfoque, uma luz, uma cena marcante, explica a importância histórica da obra; em segundo lugar, porque é uma lição de paternidade.

A seleção dos títulos ocorria de acordo com os momentos do garoto, os debates também obedeciam a essa sensibilidade. Gilmour não fez uma invasão alienígena intelectualoide no cérebro de seu filho, apenas compartilhou suas fantasias, por isso o garoto melhorou, ganhou em capacidade de expressão e passou a fazer planos.

Não foram os filmes em si os responsáveis pela transformação, eles constituíram o roteiro do encontro entre pai e filho. Porém, o cinema é muito mais do que compartilhar algumas horas de distração. Assistir a filmes e conversar sobre eles é transmitir aos filhos algo além do que compreendemos conscientemente.

É melhor do que dar sermões (os quais também são necessários, vez que outra), pois se trata de formar num filho algo mais profundo e verdadeiro, que a razão desconhece.

Gilmour morria de medo de estar fazendo uma enorme besteira. Como mãe, eu jamais teria nem metade de sua coragem, e muito menos a paciência infinita que ele demonstrou. Jesse evoluía lentamente, muitas vezes recuava, não faltaram momentos de derrota e desânimo.

Quer por louco, quer por visionário, ele ousou, e com isso, mais do que lições de história do cinema, fez seu papel de pai.

Por mais que nosso tempo invista na fantasia de termos filhos que transcendam seus pais, a transmissão entre as gerações ainda é a maior fonte de motivação para eles.

Gilmour compartilhou suas fantasias com o filho, assim como fez com essa experiência íntima de paternidade com seus leitores. Se Salinger nos aproximou da escuta dos adolescentes, Gilmour nos apresenta a bela complexidade de seus pais.

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