segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010



01 de fevereiro de 2010 | N° 16233
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


O Haiti não é aqui

Na ocasião do tsunami de 2004, o arcebispo de Canterbury fez uma declaração espantosa: acontecimentos como aquele punham em dúvida a própria existência de Deus. Corrigiu depois, como seria de esperar de um religioso, mas algo desagradável ficou pairando.

Os grandes infortúnios, como o tsunami, como o cruel terremoto de Lisboa, em 1755, não apenas deixam-nos aterrorizados, mas podem levar-nos a subverter nosso pensamento, minar nossas certezas e desconfiar de que fizemos errado para que aquilo acontecesse.

A imediata e grandiosa solidariedade para com o Haiti, que ora perpassa o mundo, unindo-o em torno dessa tragédia, pode ter razões múltiplas. Não é o momento de análises de botequim. Importa agir.

Ao pensamos no papel do Brasil nesse quadro, vemos com alegria o quanto nossos patrícios têm realizado ações positivas para auxiliar as vítimas do terremoto.

O governo, em nome dos brasileiros, doou alguns milhões de dólares. Ouviram-se reações contrárias, no sentido de condenar essa ajuda. Parece que uma paranoia, de algum tempo a esta parte, tem acossado alguns dos nossos: a de considerar promíscua e condenável qualquer relação entre o poder público e o dinheiro. Assim, parece que o dinheiro oferecido pelo governo foi roubado dos cidadãos e entregue de maneira espúria aos haitianos.

O argumento pseudo-patriótico que mascara essa lógica é o de que temos pobres também aqui, que aqui há miseráveis, muito mais merecedores dos recursos nacionais do que os haitianos etc., etc. Produziram-se frases de rima pobre, triste e pérfida: “O Haiti é aqui”. Eis um patriotismo de ocasião, desconfiabilíssimo.

Embora a classe média já seja dominante, sim, ainda temos pobres. Mas não os 120 mil mortos no terremoto. Nossa nação não está destruída pela hecatombe. Não temos inválidos ensanguentados vagando seu desespero pelas ruas destruídas.

Mesmo que fôssemos mais pobres que o Haiti, ainda assim teríamos de ajudá-lo.

Quando uma grande comoção assola o mundo, a última coisa a pensar é em fronteiras nacionais.

Sim, perante a hecatombe pode até um arcebispo duvidar de Deus, mas jamais poderemos duvidar da generosidade dos povos civilizados e solidários, com uma longa história de compaixão como o Brasil.

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