sábado, 5 de dezembro de 2009



06 de dezembro de 2009 | N° 16177
DAVID COIMBRA


O que me mata me defende

Michelangelo dizia que não era pintor. E pintou o teto da Capela Sistina, talvez a obra de arte que mais sacrifícios exigiu de um único indivíduo em toda a história da Civilização. Sacrifícios inclusive físicos – Michelangelo passou quatro anos deitado em andaimes erguidos a 20 metros do solo, numa posição incômoda que até problemas de saúde lhe ocasionou.

Michelangelo também dizia que não era arquiteto, mas projetou a cúpula da Basílica de São Pedro, a maior igreja da cristandade.

Finalmente, Michelangelo dizia que não era poeta. Ou seja: era.

Enquanto seu cinzel tirava formas perfeitas do mármore de Carrara, Michelangelo compôs pelo menos 300 aprazíveis sonetos e madrigais, a maioria dedicada a um jovem romano culto e belo chamado Tommaso Cavalieri.

Nestes poemas, Michelangelo emprega a contradição para fortalecer os versos, técnica, aliás, muito bem usada por um de seus contemporâneos, o caolho Camões.

Exemplo? No verso de uma carta que recebeu um certo marmorista chamado Sandro, Michelangelo escreveu:

“Vivo em pecado, morrendo para mim vivo;

À minha vida não pertenço, mas ao pecado:

Meu prazer vem do céu, meu mal de mim mesmo,

Do meu livre querer, do qual estou castrado.

Escrava minha liberdade, mortal meu deus

De mim se apossou!, ó infeliz estado!

A que miséria, a que viver sou fadado!”

Imagino que, nestes versos, o poeta provavelmente lamentava o drama de ser homossexual no século 16. Deu para reparar no jogo de sentidos? Escrava minha liberdade, mortal meu deus. Não é uma obra de arte?

Outro poema, redigido na década de 1520, canta assim:

“Em mim a morte, em ti minha vida;

Tu distingues e concedes e divides o tempo;

O quanto quiseres, breve e longo é meu viver.”

Viu? Morte e vida, breve e longo – contrários bailando no mesmo tom.

Mais dois outros, ambos dedicados ao rapagão Tommaso:

“Vivo da minha morte e, pensando bem,

Feliz vivo com a infeliz sorte;

E quem viver não sabe com angústia e morte,

Que entre no fogo, onde me queimo e me destruo”.

E: “Se vivo mais de quem me queima e dana,

Quanto mais lenha ou vento o fogo acende,

Tanto mais o que me mata me defende

E mais me contento onde mais me fere”.

Aí está. Feliz vivo com a infeliz sorte e o que me mata me defende. Harmônicas contradições.

Mas, na febre dos dias, não deviam ser tão harmônicas assim. Michelangelo provavelmente dilacerava-se com as contradições da sua vida. Se vivesse no século 21, e fosse gremista, como definiria o jogo deste domingo contra o Flamengo? Se o Grêmio vencesse seria uma “amarga vitória”? Se perdesse seria uma “doce derrota”, como os corintianos classificaram o jogo em que perderam para o Flamengo? O Grêmio será todo contradição, no Maracanã.

Culpa da sua direção.

Os dirigentes do Grêmio foram indecisos a semana inteira, e a indecisão é o pior defeito de quem dirige. A função de quem dirige é exatamente esta: tomar decisões. Antes decidir errado do que não decidir.

Os dirigentes do Grêmio não decidiram.

Ou, por outra: decidiram que dariam férias aos jogadores titulares e, pressionados, voltaram atrás. Foi o pior que a direção poderia fazer. Expôs o clube em todo o país e colocou seus próprios jogadores em situação constrangedora.

Por que o Grêmio não poderia antecipar as férias aos seus jogadores? Claro que poderia. Ao longo do campeonato, diversos clubes escalaram reservas, e não houve questionamento a respeito.

Por que o Grêmio teria de desgastar seus titulares numa partida que não lhe interessa? Bastava a direção anunciar esta posição com desassombro e honestidade. Mas, não. O Grêmio perdeu-se em evasivas e contradições, e contradições e evasivas, quase sempre, só funcionam na literatura.

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