terça-feira, 14 de julho de 2009



14 de julho de 2009
N° 16030 - CLÁUDIO MORENO


Os sapatos de Van Gogh

W. H. Auden dizia que cada nação constrói a sua própria imagem da Grécia antiga. Existe uma Grécia alemã, uma francesa, uma inglesa, todas elas diferentes. Até num mesmo país coexistem várias Grécias. Imaginem um professor de Filosofia Antiga, casado, conservador.

Tem três filhas e raramente sai à noite. Cultiva um jardim e aprecia longas caminhadas solitárias. Detesta estrangeiros, literatura moderna e barulho.

Sua preocupação atual é a saúde da esposa. Agora, imaginem um professor de Literatura Clássica, solteiro e ateu. De família rica, não dá a mínima para política e promove excelentes almoços para seus alunos. Gosta de viajar e de colecionar estatuetas. Detesta as garotas, os pobres e a culinária inglesa. Sua preocupação é manter a forma física.

Para o primeiro, o mundo grego lembra razão, moderação, controle emocional, ausência de superstições; para o segundo, lembra alegria e beleza, a valorização dos sentidos, a ausência de inibições. Ambos sabem que seus respectivos pontos de vista são parciais.

O primeiro não pode negar que muitos gregos cultuavam mistérios religiosos e tinham hábitos que a cultura moderna costuma condenar; o segundo tem consciência de que alguns filósofos eram puritanos extremados – mas o vínculo emocional com a Grécia de seus sonhos, formado ao longo de uma vida de estudo, é mais forte do que seu conhecimento. Não pode haver prova maior da riqueza e da profundidade da cultura grega do que este poder que ela tem de atrair todos os tipos de personalidade.

Como a Grécia, assim a arte. Um bom exemplo são os sapatos pintados por Van Gogh. Dentre os vários pares que ele pintou, um deles, em particular – Sapatos Velhos, de 1886 – foi visto de modo muito diferente pelo filósofo Martin Heidegger e pelo crítico de arte Meyer Schapiro.

Para o filósofo, são os sapatos do camponês ancestral, marcados pela umidade fecunda da terra revolvida pelo arado, dos eternos sulcos onde é lançado o grão que nunca deixará de brotar. Para Schapiro, são os sapatos de um caminhante – na verdade, do próprio pintor, que abandonou sua casa para viver, até sua morte, o exílio de uma longa marcha infeliz e solitária.

Para o primeiro, não importa a história pessoal do pintor; sua tela, como toda a arte, permite que se vislumbre o mundo sob a luz clara e misteriosa das origens; para o segundo, Van Gogh retratou em sua pintura a fadiga de todos nós, condenados a esta dura viagem sem abrigo e sem repouso.

Na verdade, não importa; como a Grécia de nossa imaginação, estes sapatos – sejam de andarilho, sejam de camponês – já pertencem a um mundo mais rico, aberto à interpretação de todas as épocas e sociedades. Estão lá, e isto basta.

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