segunda-feira, 6 de julho de 2009



06 de julho de 2009
N° 16022 - LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Cena doméstica

O gabinete é do avô escritor. O ambiente é de quem estuda: biblioteca, duas poltronas, quebra-luz, quadros, mesa, tapete de arraiolos e, naturalmente, um PC.

Ao lado do monitor, o pequeno atril metálico suporta um livro aberto, francês. Várias linhas sublinhadas em vermelho.

Não há música.

Aparece o neto, em fase de alfabetização. Pede, naturalmente, para jogar no computador. O avô sabe que terá de suspender a escritura do próximo livro, justo na cena capital. Mas o avô pondera ganhos e perdas, custo e benefício.

O avô cede ao pedido do neto. A alternativa seria a barbárie. O neto faz os cliques necessários para o download do joguinho da moda.

Enquanto a máquina realiza seu trabalho, o neto vagueia o olhar pela mesa. O avô acompanha a inspeção.

As vistas do neto param no livro aberto. Fixam-se nele. O avô já espera a pergunta: “Vovô, por que esse livro aberto?”

“É um livro que o vovô precisa para escrever o livro dele.” O neto tenta soletrar uma palavra: brim-bo-ri-ons. “Eu não consigo ler essa língua.”

“É francês. Um dia as escolas, quando tomarem juízo, vão ensinar de novo.” “E o que são essas frases riscadas com vermelho?”

“São as frases que o vovô considera muito importantes para o livro dele.”

“Ah...” O neto volta-se para o monitor. O miserável download ainda está em 80%.

O neto faz uma pergunta casual, apenas para que se complete mais rapidamente o tempo de espera: “Ah... então o vovô rouba essas frases e põe no livro novo?”

Uma sensação de delito no ar. Por sorte, em meio ao silêncio constrangido ao avô, completa-se o download. O neto, enfim, pode dedicar-se a destruir os extraterrestres, esquecendo-se da pergunta.

Como diria o Millôr: pano rápido.

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