quarta-feira, 1 de julho de 2009



01 de julho de 2009
N° 16017 - DAVID COIMBRA


Freud diante de Moisés

Algo impedia Freud de ir a Roma. Algo dentro dele, um temor, uma angústia. A Cidade Eterna representava muito para um homem que amava a História e a Arqueologia – não por acaso a psicanálise é chamada de arqueologia da mente. E sabe-se lá o que a mente complexa de Freud supunha encontrar numa cidade que é, na prática, a alma do Ocidente.

Só aos 35 anos de idade ele conseguiu vencer seus próprios terrores e os 1.116 quilômetros que separam Viena da capital da Itália. Chegando lá, se deslumbrou. Tudo o encantava, mas um detalhe mais do que todos.

Uma estátua.

O Moisés, de Michelângelo.

Freud passava horas a admirar a escultura, embevecendo-se com cada detalhe, rabiscando anotações. Assim procedeu cada vez que retornou a Roma, e, derrubada essa primeira resistência, retornou várias vezes.

Passados 13 anos do seu primeiro encontro com o Moisés de mármore, Freud escreveu um alentado artigo a respeito. Publicou-o na revista Imago sob pseudônimo. A verdadeira autoria do texto só foi descoberta 10 anos mais tarde.

Li esse artigo. Como quase tudo da lavra de Freud, é inteligente e bem alinhavado. Por isso, quando da minha primeira visita à Itália, sentia a necessidade urgente de ver o Moisés de Michelâncelo. E o fiz. Subi o morro íngreme da Igreja da Universidade de São Pedro e, num canto modesto do templo, meio na penumbra, meio esquecida, deparei com a estátua que tanto havia galvanizado o espírito de Sigmund Freud.

A escultura de fato é imponente e impressiva, mas o que mais me tocou não foi a obra em si. Foi pensar que um dia, décadas atrás, Freud esteve ali onde eu estava, deixando-se enfeitiçar pela magia de Michelângelo, como eu também me deixava. Naquele dia, no fundo da nave da igreja, tentei compor a cena: um gênio bebendo da obra de outro gênio, os dois como que se irmanando através da arte.

Quantos homens houve como Michelângelo ou Freud na história do mundo? Quantos homens realmente imprimiram uma marca na Civilização? Quantos seres humanos foram gênios de verdade?

Na vulgaridade do século 21, somos muito benevolentes para designar alguém como gênio. Michael Jackson, morto, tornou-se um.

Michael Jackson?

Chamar Michael Jackson de gênio é como, no futebol, chamar qualquer jogador em atividade no Brasil, hoje, de craque. Qualquer um. Com duas prováveis exceções, que, não por coincidência, pisarão hoje à noite no gramado perfeito do Beira-Rio.

Ronaldo já foi craque; não sei se continua sendo. Nilmar ainda não é; pode transformar-se em um. Qual deles sairá de campo com a faixa de campeão? A resposta a essa pergunta também poderá indicar qual deles será, ou ainda é, craque.

Pelo ouvido

Há uma passagem nesse texto de Freud sobre o Moisés de Michelângelo em que ele discorre acerca do efeito que as obras de arte exerciam sobre seu espírito.

“Isso já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito”, escreveu Freud, para, a seguir, presentear o leitor com uma revelação: “Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta”.

Freud não conseguia explicar a emoção que a música lhe causava. Quem consegue? Basta ouvir uma melodia simples no rádio do carro que o homem sonha, se entristece, fica eufórico ou nostálgico. Como se dá tal encantamento?

O som da torcida nos estádios também afeta inexplicavelmente os jogadores em campo. Os gramados não são muito diferentes uns dos outros, as condições de temperatura também não, mas um time que joga em casa sempre tem vantagem.

Por quê? Por causa do som ambiente. Do grito do torcedor. Que emociona, que faz o jogador correr mais do que corre, que o transforma em um tigre de chuteiras. Inexplicavelmente.

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