Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
sábado, 3 de janeiro de 2009
04 de janeiro de 2009
N° 15838 - PAULO SANT’ANA | NÍLSON SOUZA (interino)
Doutor Telmo
Ele sempre foi uma figura mítica nas conversas dos adultos lá de casa. Vivíamos na era da imaginação, não havia tevê na sala para hipnotizar e isolar as pessoas. À noite, depois da janta, os homens se reuniam para contar histórias enquanto esperavam o sono.
E nós, crianças, ficávamos em volta, escutando tudo, especialmente os relatos sobre assombrações que nos enchiam de curiosidade e terror. Quantas vezes ouvi a história do sujeito que conheceu uma bela mulher num baile e, quando foi levá-la em casa, acabou na porta do cemitério.
Mas os homens e mulheres da casa falavam também sobre os vivos e sobre as enfermidades que os ameaçavam. E quando falavam em doença, meu pai invariavelmente pronunciava um nome que era ouvido com respeitoso silêncio por todos os presentes:
– Doutor Telmo!
Nunca o vi, mas sabia de sua existência. Pelos relatos familiares, fiquei sabendo que uma vez meu pai caiu de cama durante vários dias, com febre, vômitos e outros achaques que nenhum médico conseguia curar.
Então apareceu na sua vida o doutor Telmo Kruse, que tinha consultório na zona norte da cidade. Administrou as poções certas e o fez erguer-se novamente para o trabalho. Meu pai era um trabalhador braçal.
Distribuía leite para o antigo Deal, como era chamado o Departamento Estadual de Abastecimento de Leite. Era um trabalho duro. Na madrugada, ele carregava a sua velha camionete Ford-38 com pesados engradados de ferro lotados de garrafas de leite, que distribuía de porta em porta. Um de seus fregueses era o Doutor Telmo.
Quando meu irmão foi acometido de apendicite aguda e precisou ser operado às pressas, meu pai desesperou-se porque não tinha dinheiro para pagar a cirurgia. Foi então que o Doutor Telmo conquistou sua admiração eterna, com a seguinte proposta:
– Eu opero e você me paga com leite.
Assim foi feito. Depois de contar e recontar esta história trocentas vezes, meu pai nos deixou há dois anos. Mas meu irmão está aí, com uma pequena cicatriz na barriga, para confirmar o inédito acordo.
Pois, na última quinta-feira, resolvi mostrar a meus colegas de trabalho alguns registros deixados por meu pai e, por uma dessas inexplicáveis casualidades, ressuscitei este episódio que agora relato.
No dia seguinte, fui surpreendido com uma notícia de duas colunas na página 39 deste jornal. Começava assim: “A cena médica do Estado perdeu ontem um dos seus ativos integrantes.
Telmo Kruse, um dos fundadores do Hospital Cristo Redentor, morreu aos 87 anos”. Só então vi numa pequena foto o rosto daquele personagem que tantas vezes frequentou a minha casa nos comentários de seus devotados pacientes. Fiquei arrepiado, como no tempo em que escutava aqueles relatos sobrenaturais.
A notícia sobre sua morte dava conta da importância que teve como profissional e como fundador de um dos maiores hospitais da América Latina, o Grupo Hospitalar Conceição. Também relatava sua militância em entidades de classe, sua participação no Rotary Club e o reconhecimento que teve da cidade ao receber o título de cidadão emérito de Porto Alegre.
Mas não contava – porque talvez nem ele tenha contado para alguém – que numa época pretérita, antes da televisão entrar na casa das pessoas pobres, havia um médico capaz de operar o filho de um operário, aceitando como pagamento um litro de leite por dia.
Para a minha família, este profissional que nem cheguei a conhecer não era apenas um médico competente e respeitado. Era um ídolo.
Por isso, uso a imaginação que aqueles serões familiares atiçaram na infância para vislumbrar sua chegada a outra dimensão, onde meu pai já se encontra há algum tempo.
Aposto que na primeira hora de todas as manhãs eternas, quando ele abrir a porta de sua nova morada, ou do consultório que certamente já mandou instalar lá no alto para curar anjos desastrados, encontrará um imaculado litro de leite.
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