05 DE JANEIRO DE 2022
MÁRIO CORSO
Adultos desamparados
As redes instaladas nas janelas salvam as crianças de quedas acidentais. Porém, existe uma outra interpretação brincalhona para o fato: quando os pais querem jogar as crianças pela janela, elas batem na rede e voltam. Se uma piada traz sempre uma verdade oculta, o que nas crianças nos incomoda tanto?
Creio que o melhor exemplo para abordar o tema seja um caso recente. Um homem de 47 anos chegava de avião a Porto Alegre vindo de Campinas. Faltando cinco minutos para aterrissar, ele teve um ataque de fúria disparado pelo choro de uma criança. Urrava contra a mãe e seu pequeno e ofendia quem contrariava sua conduta, disse uma testemunha da cena. O caso acabou na Delegacia do Turista quando o avião aterrissou.
Careço de maiores detalhes do ocorrido, mas é suficiente para uma hipótese. Não creio que se trate de um sujeito antissocial que odeie criancinhas. Talvez, e é mais uma possibilidade, ele odeie apenas a sua infância. O fato é que no voo ele entrou em espelho, no sentido de ser capturado subjetivamente, com o desespero do choro infantil. Isso acontece em momentos de tensão, e aviões, ainda que seguros, são ansiogênicos.
Um ataque de pânico é basicamente um reencontro com o nosso desamparo primordial. O pânico é se sentir sem pai nem mãe frente a um mundo indecifrável. Isso todos já sentimos, todos já fomos bebês. Se algo na nossa subjetividade se desregula radicalmente, podemos perder momentaneamente a amarragem subjetiva que arduamente montamos para nos afastar dessa angústia primitiva. Um episódio de fúria muitas vezes é uma defesa contra um ataque de pânico. Quanto ao caso, apostaria nesta tese.
Não por acaso pessoas têm medo de voar. Estar suspenso no ar, dentro de um tubo, à mercê do tempo da máquina, das contingências, dos chacoalhões das turbulências, pode ser bem assustador. Some isso a uma criança chorando e alguém, se estiver muito fragilizado, poderá chorar em uníssono, ou segurar seu choro com a raiva. Um ódio puro, dirigido contra tudo que não é seu eu, ódio contra tudo e todos, nasce dessa fragilidade.
Voltando à pergunta do que nos incomoda nas crianças: seu desamparo. Ataques contra elas, especialmente aos bebês, ocorrem quando o choro deles, ou mesmo olhar para sua condição, põe a furo nosso próprio desamparo.
Ser pai e mãe é estar preparado para suportar a inermidade infantil. Transmitir ao pequeno que ele está seguro, mesmo quando não se está. É saber fazer um ninho subjetivo até a criança estar pronta para suportar o desafio do mundo sozinha. Não é uma tarefa fácil, posso lhes assegurar.
Imagino como se sentiu aquela mãe, na sua tarefa contínua de acalmar o filho, sendo atacada por um desconhecido feito um bebê gigante furioso. Pensando bem, precisamos de redes nas janelas também para não atirar por elas essa gente que nunca cresce. Não por acaso, Freud atribuiu ao desamparo nossa necessidade de religiões, assim como de outros ferrolhos existenciais: ideias, ainda que ilusórias, que ponham o mundo em ordem para que não nos desesperemos.
Talvez você e eu tenhamos mais condições de suportar os gritos de um bebê sem colapsar, mas não somos blindados: em algum momento podemos dar de cara com o desamparo. Afinal, o destino nos carrega pelos ares ao seu bel-prazer, chacoalha e não falta turbulência. Sabe o que é pior? Nem fomos nós que compramos a passagem.
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