A sátira do negacionismo
O homem é o único ser da natureza que tem consciência de que vai morrer - mas, lá no fundinho de seu cérebro enigmático, mantém uma pequena esperança de que ficará para semente. Ou seja: todos carregamos o pecado original do negacionismo. Também somos, segundo os cientistas - em quem, paradoxalmente, a maioria de nós acredita - os únicos animais que riem de si mesmos. Hienas não contam, pois os pesquisadores garantem que elas ululam por frustração.
Feito este preâmbulo que os jornalistas mais antigos classificariam como nariz de cera, acho que estamos liberados para rir no filme Não Olhe para Cima, da Netflix, que está fazendo sucesso como a sátira do negacionismo. Na verdade, satiriza um monte de coisas mais, principalmente a política, ao retratar a liderança mais poderosa do planeta como egocêntrica, irresponsável e submissa ao poder econômico. O rótulo se encaixa perfeitamente nos governantes atuais que negam as evidências, ignoram a dor alheia e fecham os olhos para a realidade, da mudança de costumes à devastação ambiental.
Sobra para a imprensa também. Os jornalistas do filme tratam a catástrofe iminente - um meteoro gigante em rota de colisão com a Terra - como simples produto televisivo, ridicularizam as fontes científicas e mostram-se mais preocupados com a audiência do que com a verdade. A própria tecnologia leva bordoadas sucessivas, tanto na figura do megaempresário que controla tudo quanto na imperdível cena pós-créditos que obriga o espectador a acompanhar até o final aquela chatice de nomes desconhecidos rolando na tela.
Os nomes mais conhecidos justificam a própria celebridade: Meryl Streep exuberante como uma presidente boçal metida a esperta, Leonardo DiCaprio perfeito como cientista pouco comunicativo e sensível a pressões interesseiras e Jennifer Lawrence como estudante de astronomia irônica e inflexível nas suas posições.
Dito isso - sempre evitando qualquer coisa que possa ser interpretada como spoiler -, gostaria de voltar ao meu nariz de cera, até para justificá-lo. Se olharmos para cima, sem medos nem preconceitos, veremos que o conhecimento (do bem e do mal, conforme a metáfora bíblica) e o riso talvez sejam os antídotos mais eficientes para o negacionismo.
Mas sempre é recomendável aguardar até o fim dos créditos.
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