segunda-feira, 3 de janeiro de 2022


03 DE JANEIRO DE 2022
ARTIGOS

OH OH CAVALLO, OH OH

Havia acabado a Segunda Guerra Mundial e os soldados tinham voltado para casa. Era primavera. Em uma grande festa, todos se abraçavam. Riam. Bebiam. O soldado, que dançou a noite toda, viu na multidão aquela senhora vestida de preto. Montou no cavalo mais nobre que havia e fugiu em disparada para Samarcanda. Correu dias e noites e, quando parou, lá estava a senhora de preto. E disse: "sei que tu me olhavas com maldade. Fugi como ninguém. Como me encontrastes aqui?". E, então, ela respondeu: "Te enganas, soldado. Eu não te olhava com maldade. Era um olhar de espanto. Eu estava lá para aproveitar a dança. Te esperava hoje aqui em Samarcanda. Estavas longíssimo. Nunca imaginei que chegarias a tempo".

Essa história é provavelmente a maior canção escrita e cantada pelo italiano Roberto Vecchioni. E nos lembra, como escreveu Políbio em 230 a.C., que "a fortuna sempre ri de nossos cálculos e, cedo ou tarde, nos lembra de que o poder é um empréstimo". O mesmo aconteceu na história de Édipo, que sempre acreditou ter controle sobre a vida. Numa peça que o destino lhe pregou, mostrou a nós, segundo disse o amigo Paulo Rosa em seu livro A Paixão, como viver mantendo o respeito absoluto a uma característica fundamental da vida humana: seu caráter incerto.

Mas, como viver sabendo disso? Ou melhor, como viver sem saber disso? A expressão usada por Ricardo III "meu reino por um cavalo", na obra de Shakespeare, em um esforço de trocar o pretenso poder pela liberdade instintiva do cavalo, parece ser uma boa pista. A pandemia que estamos superando e os anos difíceis pelos quais passamos parecem estar chegando ao fim. E assim como na música e na tragédia grega, talvez nos ajudem a lembrar de sermos gratos ao destino. E quem sabe assim, mais soltos, experimentar superá-lo. Um ano novo se inicia. É verdade que muitos perderam muito. Tomara que não percamos a capacidade de distração e paixão e possamos voltar, o quanto antes, a dançar, sonhar e oferecer a nós mesmos esta bela e incerta aventura que é a vida.

HENRIQUE ROMAN ASSOCIADO DO IEE

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