03 DE NOVEMBRO DE 2021
MÁRIO CORSO
Fake news ou pega-trouxa?
Gostaria de lembrar a fonte, alguém sugeriu que a melhor tradução para fake news seria "pega-trouxa". Creio que o primeiro passo para combater as "notícias falsas" - numa tradução direta que não revela nem sua malícia nem sua capacidade destrutiva - seria substituir pelo mais certeiro pega-trouxa. Afinal, nesses casos, ou alguém está enganado, ou está deliberadamente enganando.
Saudade do tempo em que essas "notícias" estavam na esfera das lendas urbanas. Naquela época, as próteses de silicone das aeromoças explodiam quando o avião alcançava determinada altitude; os esgotos de Nova York eram habitados por crocodilos albinos gigantes; depois de uma noite de bebedeira, pessoas acordavam em uma banheira com gelo, sem seus rins, que foram roubados. Enfim, histórias situadas no arco entre o grotesco e o absurdo, mas inocentes em suas consequências.
Em uma feira do livro, uma década atrás, quando esse assunto ainda era tratado como folclore, Jean-Bruno Renard, professor de sociologia, disse que uma das vantagens do tema seria medir o conhecimento de uma pessoa. Como se acreditar nessas lorotas fosse um termômetro que revelasse a credulidade e o nível intelectual de alguém. Passados uns anos, infelizmente, o pega-trouxa fornece também o índice do analfabetismo científico.
Se antes as lorotas eram inocentes, agora podem causar dano. Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se não houvesse pega-trouxas desinformando sobre as vacinas?
Pouco depois de o nosso presidente dizer o absurdo de que as vacinas podem causar aids, já havia um vídeo na internet revelando de onde ele sacou tal informação. Tentando uma aura de credibilidade, o vídeo cita artigos e revistas internacionais, requentando um assunto que quem acompanha os estudos para desenvolver uma vacina para aids sabe de onde ele tirou. Em 2006, pesquisadores interromperam uma das pesquisas dessa vacina porque ela provocava uma resposta imune mais forte em quem já tinha sido exposto ao adenovírus-5, usado como vetor.
É assim que pega-trouxas são criados. Pega-se uma informação paralela ao tema, tira-se do contexto, distorcem-se os dados, usa-se o que os cientistas disseram para outra realidade e cria-se uma narrativa que coloca em dúvida a segurança das vacinas como um todo. Quem passa esse tipo de vídeo adiante é um trouxa, mas quem o produz é um ignorante ou um perverso?
A história humana é vasta, a ciência ainda mais, impossível saber sobre tudo. Somos todos potencialmente trouxas, por isso a ignorância nos assombra. Fico lembrando das bobagens em que já acreditei, ETs em seus discos voadores eram minha especialidade. Ficar esperto é uma luta constante, pois somos bons em praticar o autoengano, especialmente quando envolve paixão política.
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