terça-feira, 2 de fevereiro de 2021


02 DE FEVEREIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Quanto pesa a injustiça

Qualquer homem sensato enxergará as boas razões que movem o feminismo. Afinal, homens têm filhas, irmãs e amigas, e quase todos tiveram mãe. Mesmo os criminosos mais tatuados, confinados nas masmorras, temem pela integridade das mulheres que amam, expostas, do lado de fora, aos predadores masculinos.

Mas não é só pela preocupação COM ELAS que o homem de luzes haverá de compreender o feminismo. Tentarei ilustrar com uma experiência pessoal: a visão de mulheres de burca ou cobertas com outras exigências do vestuário islâmico sempre me deixou desconfortável. Sentia pena delas. No entanto, ao visitar países árabes, esse sentimento mudou - passei a sentir vergonha DE NÓS, homens. Porque em tudo as mulheres são apartadas, por lá. Há até portas de entrada exclusivas para cada sexo. Então, quando eventualmente conversava com uma daquelas mulheres, pensava: será que ela acha que concordo? Será que ela vê em mim a covardia do opressor? E baixava os olhos, e queria pedir desculpas.

Como você pode esperar afeto legítimo de alguém que você colocou em posição inferior? De alguém que sente MEDO de você? O amor espontâneo só existe entre iguais. Se você sabe disso, você pregará a igualdade.

O problema, porém, não é a prática; é a teoria. Na prática, você consegue identificar com clareza um ato discriminatório. Você diferencia a maldade da inocência, você compreende que, às vezes, uma brincadeira é apenas uma brincadeira, um charuto é apenas um charuto, como diria o velho Sigmund. Já a teoria congela a sensibilidade. A percepção real do que foi dito ou feito se estilhaça diante da dureza do dogma. É a tal letra fria da lei.

Uma pessoa que foi catequizada por qualquer ideologia ou religião perde a flexibilidade de pensamento e, principalmente, de sentimento. Ela está treinada para caçar ameaças em toda parte. Ela procura o preconceito. E acha.

Esse é o defeito das radicalidades idealistas de hoje, e essa é a aflição do Ocidente no século 21. Todos os dias alguém se senta no banco dos réus de um julgamento comportamental. Como isso vai produzir concordância?

Fiz todo esse arrazoado para falar da autobiografia de Woody Allen. Porque ele foi vítima dessas radicalidades. Como você deve saber, a atriz Mia Farrow, que teve um relacionamento de 12 anos com Allen, o acusou de ter abusado de uma de suas filhas quando a menina tinha sete anos de idade.

Sem ler o livro, se você se informar sobre o caso com independência, constatará que as acusações não se sustentam. O que, aliás, foi referendado por especialistas de universidades americanas, psicólogos, assistentes sociais, investigadores etc. Tanto que, depois do ocorrido, Woody Allen recebeu permissão das autoridades para adotar duas meninas, e assim o fez.

Lendo o livro, você se espantará com a forma como Woody Allen foi atacado e estigmatizado, inclusive por pessoas que lhe deviam favores. Porque existe uma fúria condenatória nos Estados Unidos. Em todo o Ocidente, verdade, mas sobretudo nos Estados Unidos. Uma acusação de conduta inapropriada não é só uma acusação: é uma sentença.

Essa situação produziu resultados inesperados. Hoje, alguns americanos se recusam a ficar sozinhos com uma mulher no elevador. Em certas empresas, o executivo só faz reunião com uma mulher se houver uma terceira pessoa presente. E, embora ninguém vá reconhecer isso, muitos empregadores evitam contratar mulheres, com medo de enfrentar denúncias de assédio, caso tenham de demiti-las.

A reação da sociedade aos abusos que sempre foram cometidos contra as mulheres é ótima. Os excessos da reação, péssimos. Pois é de se supor que, dentre as 4 bilhões de mulheres que existem no planeta, algumas sejam mal-intencionadas e possam até agir por ressentimento.

É o que aconteceu no caso de Woody Allen, e tenho convicção de que foi o peso da injustiça que o levou a escrever sua autobiografia. Que não se resume ao litígio com Mia, claro, mas duvido de que ele tivesse se atirado ao projeto, se não estivesse se sentindo acuado. Para o leitor, terminou sendo bom. Você fica sabendo muito sobre o cinema, sobre um estilo de vida sofisticado de Nova York e sobre a vida singular de grandes personagens. Uma leitura boa e fácil. Mas não sei se foi bom e fácil de escrever.

DAVID COIMBRA

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