sábado, 16 de janeiro de 2021


16 DE JANEIRO DE 2021
J.J. CAMARGO

MORTES NÃO CONTABILIZADAS

A angústia de quem está esperando é inevitável. Qualquer que seja a razão da espera. O quanto teremos que esperar gera mais ansiedade do que irritação, mas esta acaba se impondo, quando o esperando desespera.

Se isso é rotina nas atividades cotidianas, onde com frequência temos a nossa tolerância desafiada e protestamos com veemência sempre que achamos que a protelação decorre de desconsideração (logo conosco que somos pessoas tão importantes!), imagine-se o sentimento desesperador de quem, completamente fragilizado pela doença, porque dependente de ajuda para as atividades mais elementares, se encontra numa lista de espera para um transplante de órgãos, esta condição de vulnerabilidade máxima, porque está em jogo nada menos que a vida do desafiado.

Em um país que ainda não tem a cultura da doação de órgãos, a espera por um transplante ainda tem agravante: não há como prever que tempo será, porque não há ritmo nas doações, condicionadas a estímulos externos, em geral midiáticos, para que as doações ocorram ou minguem.

Seguindo o aforismo de que quando está ruim, sempre é possível piorar, de repente um chinês distraído se esqueceu de cozinhar o morcego e incendiou o mundo com uma pandemia sem antecedentes na civilização contemporânea.

A ameaça desconhecida, subvalorizada no início, porque se supôs se comportaria como as outras infecções por coronavírus, assumiu enormes proporções, disseminando-se pelos cinco continentes, democratizando o pânico, banalizando a morte e introduzindo um elemento desconhecido para quem sobreviveu ao século 20: o sofrimento coletivo.

Com forte participação da mídia, promovendo a contagem constante das vítimas e mostrando vídeos de covas rasas para mortos que nem tiveram a chance de serem pranteados por suas famílias, a atividade médica perdeu o foco para todas as outras doenças que não tivessem no nome, o número 19.

Instruções equivocadas do Ministério da Saúde recomendavam que, diante de sintomas de infecção respiratória, devia-se evitar o hospital, porque lá, em emergências lotadas, haveria, sim, o risco de adquirirem a doença. Desse disparate, resultaram duas consequências danosas: 1) os pacientes crônicos passaram a morrer em casa de doenças curáveis, por temor de irem ao hospital, ou seja, por medo de adquirirem a doença nova, centenas de pessoas morreram da doença velha; 2) doenças prevalentes, como câncer, por exemplo, tiveram seus diagnósticos negligenciados, implicando certamente em morte por enfermidades originalmente curáveis se o diagnóstico tivesse sido feito precocemente.

Neste contexto, e com as Unidades de Terapia Intensiva destinadas quase inclusivamente ao tratamento da pandemia, as doações caíram drasticamente, levando-nos a uma condição nunca observada em 31 anos de implantação do Programa de Transplante Pulmonar no nosso país: pela primeira vez tivemos menos pacientes transplantados do que mortos na lista de espera.

A cumplicidade entre os candidatos ao transplante, estimulada pelo convívio diário na fisioterapia, com o desenvolvimento espontâneo de solidariedade e empatia entre eles, exerceu então um efeito devastador. Cada morte na lista de espera se multiplicava no grupo como um rastro de desesperança, expresso claramente pelo desinteresse em fazer, durante muitos dias, qualquer tipo de exercício.

Muitas vezes fomos pressionados por pacientes, procedentes de outros Estados brasileiros, com dilemas terríveis. Um deles me perguntou diretamente: "Doutor, sinceramente, o senhor acha que tenho mesmo chance de ser transplantado, porque, se não, eu prefiro ir embora e morrer perto dos meus. Faça alguma coisa por mim, doutor. Me ajude, eu morro de medo de morrer sozinho!".

Deprime saber que esses dramas e muitas dessas mortes poderiam ser evitados.

Só resta-nos esperar que as vacinas nos devolvam a vida normal e que a sociedade se dê conta de que todo esse sofrimento coletivo só terá algum sentido se nós, os sobreviventes, ao fim de tudo, percebermos o quanto somos vulneráveis e carentes de generosidade e compaixão.

J.J. CAMARGO

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