sexta-feira, 8 de janeiro de 2021


08 DE JANEIRO DE 2021
EDUARDO BUENO

O hino e os escravos

Foi a torcida do Grêmio que começou a bradar o Hino Rio-Grandense a plenos pulmões, tentando abafar os acordes do hino brasileiro. Foi nos anos 1990, quando o time de Felipão travestiu-se de herói farroupilha para combater "o centralismo rapinante" do Império - embora seu real modelo (sem que ele talvez soubesse) fossem os cavalos que os revoltosos de Vargas amarraram no obelisco carioca. Ninguém ficava sentado naquela hora - acho que por livre e espontânea vontade, mas, caso não se levantasse, creio que seria erguido pelo cangote.

Costumo dizer que sou gaúcho mas não exerço - nem carne eu como. Mas sou gremista, acompanhei aqueles jogos (e aqueles títulos) e urrava junto. Tinha consciência de que era um momento histórico que reproduzia, "dentro das quatro linhas", velhas repulsas, velhas revoltas e, claro, velados recalques dos gaúchos com relação ao "centro do país". Raras vezes se chegava ao ponto da letra que diz "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Mas, quando se chegava, isso queria dizer o que sempre quis: que povo que não luta contra os desmandos da CBF e contra interesses extracampo, acaba por ser garfado. Qualquer povo, de qualquer cor, pode cantar isso - embora, naquele caso, fôssemos todos azuis, pretos e brancos.

A Revolução Farroupilha, essa que os gaúchos perderam, fingem que empataram e festejam como se houvessem ganho, é um saco de incongruências, a começar que se trata de raro caso em que a história é contada pelos vencidos, além de ter sido capaz de obter apoio e simpatia daqueles que foram suas vítimas e jamais apoiaram os farrapos: os porto-alegrenses. Como se não bastassem as contradições e reticências que cercam o conflito - e sua historiografia -, ele terminou com o infame episódio de Porongos, onde os lanceiros negros teriam sido desarmados e massacrados. Caso nunca de todo esclarecido e diante do qual os historiadores recuam ou propagam boatos.

Alguns vereadores de Porto Alegre não se levantaram ao som do hino, em sua posse. Acham a letra racista e propõem suprimir o trecho que tem a palavra "escravo". Palavra essa oriunda de "slave", pois os escravos originais eram os eslavos, aprisionados em massa no século 9. O tema é largo e, entre outros tópicos picantes, envolve a história do maestro vira-casaca Medanha, que fez a música, e do Chiquinho da Vovó (Pinto da Fontoura), que fez a letra (da qual já foram expurgados gregos e baianos - ops, romanos). Mas essa coluna é estreita.

Não sei se os ditos vereadores vão alcançar seu objetivo. Mas sei que os gaúchos de todas as querências, e de todas as cores, nunca obtiveram grande coisa com suas velhas revoltas, repulsas e recalques. Exceto no caso das cavalgaduras de Vargas. E, é claro, naqueles títulos do Felipão, que deixavam a torcida de pé desde o hino.

EDUARDO BUENO

Nenhum comentário: