29 DE JANEIRO DE 2021
EDUARDO BUENO
Laputa
Por motivos fáceis de entender mas difíceis de aceitar, muitos leitores continuam, em pleno 2021, achando que As Viagens de Gulliver, a cáustica e deliciosa obra que Jonathan Swift escreveu em 1726 é um livro infantil. E, mesmo entre aqueles que a conhecem nesse formato, poucos avançam além da primeira viagem, aquela que conduz Gulliver a Lilliput, o país de gente em miniatura, no qual ele vira gigante e de onde é expulso após ter tido a genial ideia de debelar as chamas que se alastravam pelo palácio real... fazendo xixi nele. Alguns leitores ainda seguem o desastrado Lemuel Gulliver até Brobdingnag, onde as coisas se invertem: os gigantes são os outros, e ele, um mini-humano, vira joguete nas mãos de crianças mimadas e quase é devorado por insetos do tamanho de elefantes.
É uma pena que raros se aventurem nas duas jornadas que vêm a seguir - aliás, minhas favoritas. A quarta e última o conduz à terra dos Houyhnhnms (mais do que palavra, um relincho), no qual sábios e altivos cavalos governam uma sociedade utópica, eficiente e justa, onde os únicos problemas são causados por animais imundos e abjetos chamados Yahoos. Mais tarde, Gulliver descobre, horrorizado (atenção! Alerta de spoiler 300 anos depois), que os Yahoos são... humanos. Expulso da terra dos Houyhnhnms, nosso herói enfim retorna para a Inglaterra. Decide então viver num estábulo, cortando de vez os laços com os Yahoos ingleses.
Mas o melhor é a viagem a Laputa. Laputa é uma ilha magnética, que flutua sobre a ilha inferior, conquistada por ela. A classe dominante mora, é claro, no andar de cima. O povaréu vive e labuta lá embaixo. Quando os pobres se revoltam, Laputa estaciona em cima da vila rebelde, tirando-lhe sol e chuva. Se a rebelião persiste, apedreja-a; se nem isso basta para sufocar a insurreição, esmaga-a - literalmente. Ploft.
Os homens mais notáveis de Laputa são os "projetistas", que... bem, "projetam". Um deles quer extrair raios solares de pepinos. Outro concebeu um genial método de arar a terra: obrigou os camponeses a enterrar toda sua safra e soltar porcos para lavrá-la, preparando-a para o próximo plantio. Mas o melhor é o projetista que tenta reverter as fezes humanas aos alimentos que lhes deram origem. Vive cercado de tonéis com excrementos e força as cobaias do mundo inferior a testar o resultado.
Quanto a mim, sigo aqui em Leporto, tentando transformar os excrementos que os Yahoos despejam no esgoto das redes em algo que possa ser aproveitado. É um serviço sujo. Mas não só tive a honra de traduzir como conheci o maior poeta norte-americano do século 20, Allen Ginsberg. Ele escreveu: "O mundo é uma montanha de bosta/ Se queremos mudá-lo, é preciso meter a mão nela". ?Assim, aqui estou, de olhos bem abertos e nariz bem fechado.
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