domingo, 31 de janeiro de 2021


30 DE JANEIRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OS IMPUNES 

A impunidade é o maior castigo que nós, humanos, impomos a outros humanos como nós. Por isto, recordo agora o horror de duas datas do final de janeiro: a matança na boate Kiss, em Santa Maria, e os deslizamentos na mina de Brumadinho (MG).

Em Brumadinho, até hoje (dois anos depois) máquinas escavam o que foi lama ácida, em busca de cadáveres soterrados na atual terra seca e estéril. Rios e arroios seguem poluídos e a contaminação chega ao mar.

Nada, porém, supera a tragédia de oito anos atrás na boate Kiss. Mais brutal do que o terror da madrugada de 27 de janeiro de 2013, que matou 242 pessoas, é o que veio depois. A Justiça não estabeleceu culpas nem culpados, não há ninguém preso. Tudo leva a esquecer a tragédia, como se os únicos culpados fossem os próprios mortos. A tentativa de fazer desaparecer o cerne da tragédia vira angústia e fere a sociedade inteira.

Nem na guerra farroupilha ou na revolução de 1923, houve tantos mortos de uma só vez e num único episódio como em 2013 em Santa Maria. Mais trágico ainda: ao protestarem pela lentidão e leniência judicial, familiares das vítimas foram processados por um promotor de Justiça que se sentiu "ofendido na honra".

A tragédia foi tratada como simples rixa ou acidente de trânsito, quando - de fato - tratou-se de um crime provocado pelo desleixo e cobiça dos donos da boate e da banda, ao apresentarem como "atração" o fogaréu que gerou o incêndio.

Os oito anos sem decisão da Justiça abrem portas ao descrédito e ao ódio e nada é pior do que o ódio da vingança substituindo a Justiça. Até porque nenhuma vingança ressuscitará os mortos na Kiss ou despoluirá as terras e águas estéreis em Brumadinho.

A impunidade, porém, pode nos sufocar se as mesmas tragédias se repetirem com outras caras. O desastre de Brumadinho, por exemplo, pode repetir-se aqui com a pretendida mina de carvão a céu aberto às margens do Jacuí, próximo à Capital.

Mas há, também, o tragicômico. O governo federal gastou mais de R$ 15 milhões na compra de leite condensado em 2020, cinco vezes mais do que os R$ 3,2 milhões aplicados no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais com os satélites que monitoram a Amazônia e o Pantanal ou preveem o tempo. Outros R$ 2 milhões foram gastos em chicletes. O presidente da República justificou os gastos, porém, alegando que o leite condensado atenua o desgaste físico dos soldados e de outros setores que vigiam a Amazônia e que chiclete auxilia na higiene bucal?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

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