sábado, 16 de janeiro de 2021

16 DE JANEIRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

O HERÓI

Das tramas entre religião, cultura e política, eis palavra-chave, o termo herói, com que os gregos designaram tipos entre o humano e o divino, por vezes chamados semideuses (hemitheoi). Era signo de identidade e distinção para a aristocracia grega, que se queria próxima de deuses e deusas, com quem combatiam e copulavam, como se lê nos poemas de Homero, a Ilíada e a Odisseia (séc. IX a.C.). O termo héros era então um título de nobreza, de personagens que almejavam realizar feitos notáveis para obter fama e perenizar-se na memória, bem como para exercer prestígio e comando. Sujeito de uma relação particular com os deuses e o destino (Torrano), o herói evidencia os limites da condição humana e presta-se para pensarmos a liderança, nem sempre nos termos pretendidos pela aristocracia. Você quer ser herói ou heroína? Vejamos, antes, para quem serve esse destino.

Ao mito do herói, forte no folclore arcaico, correspondeu o culto heroico, em que a potência dos ancestrais era evocada em defesa da comunidade. Assim desenvolveu-se uma tradição religiosa ligada ao território, política por natureza. Hinos, imagens, festas, altares e sacrifícios situavam a religião heroica na vida das aldeias e, posteriormente, da pólis, gerando uma relação muito forte entre mito heroico e cidade, na estatuária equestre e cívica, nos bustos e nos topônimos, nos espaços de poder, nas ruas e nas necrópoles. O motivo heroico pertence ao genoma de nossa cultura e, por isso, aparece com plena força na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas e especialmente no cinema e nos quadrinhos, como bem examina Hugo F. Bauzá em El Mito del Héroe (FCE, 1998); o padrão heroico de 22 episódios de narrativa, fundamental, foi decifrado na análise de Lord Raglan (The Hero: a Study in Tradition, Myth, and Drama, 1936) e sumarizado em In Quest of the Hero (Alan Dundes, 1990), obras que vão bem além do livro popular de Joseph Campbell (O Herói de Mil Faces, 1949).

Com toda essa parafernália histórica, cultural e teórica, o herói é também uma máscara que pode ser vestida, como parte dos estereótipos e vocabulários do poder, em formas eficientes da demagogia, bem conhecidas de marqueteiros e ambiciosos. Os gregos cedo o perceberam e iniciaram o ataque às ambições heroicas da aristocracia, como se lê na obra de Arquíloco de Paros (680-645 a.C.). Do herói glorioso de Homero, chega-se à era do herói problema, na Tragédia Grega (séc. V a.C.), onde o protagonista, no centro do palco, solitário e teimoso, sofre análises que evidenciam sua incompatibilidade com o regime cultural e político do diálogo e da partilha do poder, a democracia. Além disso, o herói paga por sua ambição, pois o líder é o responsável que tem a culpa dos infortúnios, quando a crise aparece. Eis Édipo diante da peste.

É preciso distinguir o herói que salva vidas do líder metido a herói, de Collor ao presente vilão, sobretudo quando omite-se de salvar, torna-se responsável pela morte de seu povo e clama por seu próprio sacrifício, para o bem da nação. E uma heroica flor nascerá das cinzas.

FRANCISCO MARSHALL

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