sábado, 16 de janeiro de 2021


16 DE JANEIRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OS FORDECOS

O fechamento das fábricas da Ford no Brasil não é só um problema empresarial. Vai além e reflete uma situação da modernidade. O carro pessoal facilitou o estilo de vida, mas acirrou o individualismo e alterou o comportamento e a relação familiar.

Hoje, o carro é parte da família. É o "filho metálico", com aposento próprio na casa ou apartamento, que se deprecia sem garagem. A Ford foi pioneira no Brasil e está aqui há mais de um século. Nasceu dela até a velha forma de chamar o automóvel. Nos anos 1940-50, era comum dizer "tenho um fordeco da Chevrolet" ou de outra marca. "Fordeco" era a denominação de carro em si.

A tal "lógica do mercado" (ou a queda nos lucros e os prejuízos) levou ao fechamento. As "multinacionais" farejam o lucro fácil, mais do que nos desenvolver. Nos últimos anos, a Ford recebeu R$ 20 bilhões em isenções fiscais, mas investiu aqui muito menos do que isso. Agora, o gigante encurta as pernas para dedicar-se aos carros elétricos na matriz nos EUA. Os atuais, a gasolina, serão joias raras, disputadas no futuro como diamantes, mas não se produzirão.

O fechamento coincide com dois outros desastres. A pandemia e a decisão do Banco do Brasil de fechar centenas de agências e desfazer-se de 5 mil funcionários para dedicar-se ao atendimento virtual.

Eis aí uma mudança mais brutal que a da Ford, pois nos leva a um perigoso mundo desconhecido. A "virtualidade", em que a máquina substitui a presença humana, tende a nos fazer meros robôs, tristes objetos sem alma ou sentimento, que só sabem apertar botões. O telefone celular já mostra o poder dos botões que nos dizem tudo o que o sabichão Dr. Google nos indica como verdade absoluta e nem sempre verdadeira.

Não há mundo ou vida virtual. Nenhuma virtualidade substituirá jamais o amor, síntese de vida. Tanto no terno amor pela humanidade quanto no roçar erótico dos corpos, só há o concreto.

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A maldade e a perversão social são concretas, também, mas se escondem, às vezes. Tal qual dias atrás, quando Bolsonaro reiterou que vai "armar a população", pois - disse à saída do Palácio - "a arma é liberdade". Assim, ele inocenta o horror e abre portas para que simples discussão no trânsito vire crime e morte.

Nada é mais perigoso, porém, do que os projetos que dão autonomia, de fato, às polícias militares estaduais, tirando o controle da sociedade exercido, hoje, pelos governadores.

As fábricas fechadas dos "fordecos" são, apenas, a moldura do imenso quadro infestado de cupim, colocado na sala como adorno.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

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