terça-feira, 26 de maio de 2009



Amar, verbo em transição

O amor é poderoso. Mesmo quando não estamos sob seu jugo nos mobilizamos para reencontrá-lo. Mas a que preço? Vale a pena tanta expectativa? O romantismo é a melhor receita? Chegou a hora de se surpreender com a capacidade humana de inventar e reinventar esse sentimento.

Direção de arte • Camilla Sola Texto • Raphaela de Campos Mello
Ilustração • Adriana Alves


As mulheres ocidentais protagonizaram uma saga e tanto nos últimos 50 anos. Num período muito curto aos olhos da história, deixaram pa ra trás um script pré-fabricado por suas antecessoras, no qual o único caminho possível para a felicidade era casar, ter filhos e viver feliz para sempre, e embarcaram, no final da década de 60, numa missão exploratória inédita. Queriam conquistar uma condição nunca antes experimentada, a de existir com autonomia.

Queimaram sutiãs, aderiram à pílula anticoncepcional e, com muita elegância e competência, ocuparam seus assentos no mercado de trabalho, apesar de muitas ainda lutarem pelo reconhecimento de seus talentos. Foram adiante. Abandonaram relações insatisfatórias, assumiram produções independentes, sentiram no rosto, enfim, a brisa fresca da liberdade.

Atualmente, trabalham, estudam, curtem os amigos, a família, frequentam a academia, praticam ioga, têm seus passatempos e ainda assim não são poucas as que se sentem incompletas, e continuam na esperança de encontrar uma metade capaz de gerar o encaixe perfeito. A solidão, antes distante ou difusa, hoje dá as caras e assusta. O que desejam, então, as mulheres da atualidade, filhas das ideias revolucionárias e dos contos de fadas?

“Hoje, queremos tudo: o amor, a segurança, a fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade”, analisa a historiadora carioca Mary Del Priore, autora do livro A História do Amor no Brasil (Contexto).

Segundo ela, a trajetória feminina recente se deu a passos muito acelerados e, ao pisar em solo ainda movediço, essas gerações tiveram de lidar com um acúmulo de novidades que acabaram sendo mal digeridas. No plano individual, isso favoreceu a perda do equilíbrio e do distanciamento crítico. Duas ferramentas fundamentais para se safar das armadilhas que nos afastam de nós mesmas.

Sim, as arapucas existem aos montes e nos seduzem sem grandes esforços. Estamos falando, por exemplo, do narcisismo exacerbado e levado às últimas consequências por algumas de nós.

“Hoje, muitas mulheres estão ressentidas porque o casamento não deu certo, sobrecarregadas pelo acúmulo de tarefas e ainda se deixam manipular pelos apelos da vaidade e do individualismo”, aponta a historiadora, referindo-se às novas formas de opressão feminina, entre elas, o culto excessivo ao corpo e à juventude eterna, ao desempenho sexual e ao prazer, procurado nas mais diferentes esferas da vida, quase como uma obsessão.

Comportamentos que “solaparam os aspectos positivos da luta feminina”, na opinião de Mary. Essa mistura de ingredientes resultou, na visão da historiadora, numa grande “desordem amorosa”. Onde antes se erguiam castelos cor-de-rosa, hoje sobram queixas e frustrações. “Há um número crescente de pessoas sozinhas e também uma enorme dificuldade em se doar.”

“Queremos o amor, a segurança, a fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade. No entanto, há uma enorme dificuldade em se doar”
Mary Del Priore, historiadora

Quebrando o feitiço

Mesmo num cenário de mudanças tão apressadas, o amor romântico continua se apresentando como um mito que nos persegue com persistência às vezes exagerada, sem distinção de sexo. Sim, homens e mulheres estão na mira dele. Em pleno século 21, as tramas adocicadas dos livros, desenhos animados, filmes e novelas insistem em nos fazer sonhar com o final feliz, impreterivelmente a dois.

A essa altura, você deve estar suspirando. Conselho: prepare-se para o que vem agora. “Temos de nos livrar da crença, presente e potente em nossa cultura, de que esse é o caminho que abre todas as portas da felicidade”, alerta o psiquiatra paulista Flávio Gikovate, autor do livro Uma História do Amor... Com Final Feliz (MG Editores), entre outros títulos.

Esse aviso tem razão de ser. A fusão de duas almas ainda é vista como um portal de acesso ao sublime e, por isso mesmo, protegido por uma redoma sagrada. Não é à toa que questionar sua natureza pode soar como heresia. Mas, se observarmos com certo distanciamento, veremos que esse sentimento nasce como um passe de mágica, arrebata os enamorados do dia para a noite e se perpetua à custa de altas doses de fantasia, além de inúmeras exigências e cobranças.

Por isso, os estudiosos da psique humana não cansam em nos alertar. Na paixão, não enxergamos o outro como ele é, apenas aquilo que queremos ver. Em geral, a soma de nossas próprias qualidades. Resultado: não nos apaixonamos pelo outro, já que nem sequer o percebemos, mas por nós mesmos.

Daí vem a expressão “não há espelho melhor do que os olhos do ser amado”. É claro que esse feitiço se esvai com a convivência. Um dia a verdade vem à tona. E espantados descobrimos que o objeto da nossa devoção é um mortal, com defeitos e qualidades.

Mudanças à vista

Repito: vivemos uma fase de transição. Ainda estamos apegados ao ideal romântico e, ao mesmo tempo, desejamos construir uma relação a dois mais autêntica, com mais liberdade e menos requisições. Isso só poderia resultar em confusão e contradição.

A psicanalista e sexóloga carioca Regina Navarro Lins acredita que os encontros e desencontros amorosos protagonizados por muitos de nós criam um vácuo, amedrontador, sim, mas potencialmente benéfico, se o enxergarmos como um espaço criativo de onde podem surgir – e, segundo ela, isso já está acontecendo – mudanças significativas na nossa forma de encarar os relacionamentos.

Segundo Regina, o amor romântico começa a dar sinais de que está saindo de cena, levando com ele o ultimato de exclusividade, desde sempre, seu pilar de sustentação. “Estamos descobrindo como é fundamental voltarmos para nós mesmos a fim de desenvolvermos nosso mundo interno. Acontece que a lógica do amor romântico, apoiada em expectativas, idealizações e dependência, é contrária aos novos anseios individuais”, avalia Regina.

No seio desse jogo de forças opostas – parceria x individualidade, fragilidade x autonomia –, o amor está sendo remodelado. Cada vez mais pessoas acreditam que o poeta Vinicius de Moraes está desatualizado e garantem que é possível, sim, ser feliz sozinho e desfrutar de uma vida plena, recheada de interesses e projetos de todas as ordens.

A parceria amorosa não precisa ser excluída desse pacote. Muito pelo contrário. Ela só tem de ser reconfigurada, entrar como algo mais. Tarefa que exige a fabricação de uma roupagem mais realista, o que não significa dizer, é bom ressaltar, menos envolvente e satisfatória.

Se antes as volúpias da paixão ditavam as regras entre os enamorados, hoje, a sede de autoconhecimento e crescimento pessoal está falando mais alto e, consequentemente, mudando a maneira de nos relacionarmos. Segundo Gikovate, essa força curiosa e libertária mais cedo ou mais tarde faz apitar o sinal de reabastecimento de nossos compartimentos individuais. Nesse momento, lembramos que é hora de nos afastarmos um pouco dos projetos a dois em favor de nossos próprios interesses.

Cada vez mais as pessoas estão percebendo a importância desse movimento rumo à individualidade, apontam as pesquisas. Ficar sozinho também já não é mais motivo de vergonha. O preconceito não está mais localizado na sociedade, que outrora estigmatizava o estar só como sinônimo de fracasso. Já dentro de nós as cobranças teimam em nos atormentar.

“O problema são as nossas crenças, coisas que vieram de fora, sobretudo das gerações anteriores, e estão enraizadas no nosso modo de pensar”, analisa Gikovate. Como exemplo, ele cita a crença, ainda viva em muitas mulheres, de que é menos constrangedor ser divorciada, pois, pelo menos, o casamento existiu um dia, do que solteira – para elas, um atestado de rejeição. Ou, se preferir, um pesadelo.

Apesar da persistência entre nós de pensamentos como esse, o cenário nunca foi tão propício à individuação. A parceria amorosa, nesse novo contexto, passa a ser um acidente de percurso, muito bem-vindo por sinal, e não mais um bote salva-vidas, o único remédio para a dor do abandono que nos acompanha desde o nascimento. Não se esqueça de que um dia fomos expulsos do útero materno, o protótipo do paraíso, onde nossas necessidades vitais eram atendidas sem o menor esforço.

Para o psiquiatra, pessoas bem resolvidas com as dores e os prazeres da vida têm, pelo menos, três caminhos a seguir: descobrem as delícias da solidão e se mantêm sozinhas, mas nunca solitárias, ou alternam fases em que estão bem acompanhadas e outras em que voltam a ser solteiras sem drama, apenas porque as relações que viviam não ofereciam mais possibilidades de evolução.

A terceira situação ainda é a mais almejada – uma parceria duradoura e serena, um tipo mais evoluído de relacionamento que o psiquiatra batizou de + amor.

“O + amor aproxima-se da amizade no que se refere à solidez, à confiança, ao respeito aos direitos do outro, à preservação das liberdades e dos desejos individuais. A outra face se aproxima da paixão, pois a intensidade da intimidade é máxima.” Algo como “um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida”, para citar um belo verso de Cazuza.

“Temos de nos livrar da crença, presente e potente em nossa cultura, de que o amor romântico é o caminho que abre todas as portas da felicidade”
Flávio Gikovate, psiquiatra

“Daqui a algum tempo, é difícil precisar se em dez, 20 ou 30 anos, menos pessoas vão querer se fechar numa relação a dois”
Regina Navarro Lins, sexóloga

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