sábado, 23 de maio de 2009



24 de maio de 2009
N° 15979 - MARTHA MEDEIROS


A sedução da pilantragem

O documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei pode ser avaliado sob diversos aspectos. O sentimental deixarei para o final do texto. Prefiro começar por um aspecto menos relevante, ainda que também relevante: o deslumbramento diante do sucesso.

Simonal, que tinha uma origem humilde, se comportou como outros tantos que, impressionados com a fama súbita, desfilam com o maior número de carros e loiras que possam colecionar. O deslumbramento é sempre patético.

Demonstra total despreparo psicológico e desconhecimento sobre a montanha-russa que é a vida. Simonal deixou seu ego inflar e cometeu uma brutalidade que lhe custou a imagem pública: imaginando-se roubado pelo seu contador, contratou dois capangas para dar uma surra no cara, e ainda pecou pela soberba ao alegar, na delegacia, que era “amigo dos homi”, ou seja, blefou que era de direita em plena ditadura militar. Ingênuo, acreditando que sairia ileso desse carteiraço verbal, pagou com um boicote da classe artística que nunca imaginou sofrer.

Depois da overdose de aplausos, viveu sua overdose de ostracismo. Nunca mais foi convidado a mostrar o rosto em lugar nenhum, e muito menos sua voz. Morreu no limbo.

O outro aspecto incômodo do filme é o papel da imprensa, que não titubeou em expandir o boato de que o cantor era um dedo-duro a serviço do DOPS, fabricando assim um Judas perfeito para a primeira página.

Era uma época radical em que você precisava escolher de que lado estava, e se fosse o lado de lá - o dos milicos - não tinha papo. Se o governo torturava com pau-de-arara, os veículos de comunicação, sufocados pela censura e não podendo falar a favor dos “seus”, torturavam os “deles” com o único instrumento que possuíam: o desprezo absoluto, que foi o que sobrou para o cantor. Tudo era primitivo e emocional, o que sempre resulta em um flerte com a injustiça.

Afora essas reflexões, que logicamente são importantes, o que me encantou pra valer no documentário foi a chance de fazer uma deliciosa e nostálgica viagem no tempo.

Eu era criança e cantarolava Meu Limão, Meu Limoeiro pela casa, enquanto ouvia boquiaberta meus pais contarem que haviam visto Simonal num show ao vivo, e que ficaram rendidos pelo balanço daquele que chegou a fazer duo com nada menos que Sarah Vaughan. Ele tinha lugar de honra na nossa discoteca familiar e hoje entendo melhor a razão. O homem era puro suingue e personalidade.

Aquele tipo de sujeito que a gente ama odiar: bico-doce, folgado, com um pé na cafajestice, ou seja: um sedutor. Um cara que beija sua mão, numa atitude cavalheiresca, mas que no fundo é um debochado, e como todo deboche passa por graça, deixava homens e mulheres com um sorriso bobo no rosto. Tinha feitiço.

Cantava demais, e cantava a todos.

Pena que foi uma história sem final feliz, mas que bom que Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal resgataram esse fenômeno esquecido, dirigindo um documentário que não se propõe a transformar Simonal em anjo póstumo, e sim a homenagear seu endemoniado talento.

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