quarta-feira, 20 de maio de 2009



20 de maio de 2009
N° 15975 - DAVID COIMBRA


O carreteiro perfeito

Já houve algum dia um homem que jamais foi rejeitado por uma mulher? Ou um que nunca tenha se decepcionado com um amigo, ou se aborrecido no trabalho, ou sentido dor? Algum dia viveu sobre a Terra um homem que atravessou a existência sem que em nenhum momento tivesse vontade de simplesmente sumir?

Pois existiu um homem que era como se fosse um desses homens. Soube dele tempos atrás, quando cobria a Seleção Brasileira em uma dessas viagens pelo estrangeiro. Ronaldinho Gaúcho, então no zênite da carreira, chegou para mim e perguntou:

– Sabe quem de nós aqui é o que melhor bate na bola? Hesitei. Olhei em volta. Era uma Seleção de virtuoses. Lá estavam todos eles, equilibrando a bola na ponta da chuteira. Seria o próprio Ronaldinho? Ou Ronaldão? Talvez Romário?

– Nenhum desses – sentenciou Ronaldinho. – É ele.

E apontou para um senhor de cabelos brancos e barriga bem fornida de jantares copiosos que arrastava sua pachorra pela grama perfeita da grande área. Era Valdir de Moraes, o treinador de goleiros. Valdir de Moraes?, perguntei de mim para mim. Não pode! Passei a observá-lo. O velho Valdir dominava a bola com a naturalidade de quem boceja e anunciava para um jogador lá na ponta-direita, a 60 metros de distância:

– Pé direito!

E mandava um lançamento macio como as canelas da Luana Piovani, que ia se aconchegar precisamente no pé direito do jogador. Sempre assim, tranquilo e infalível como Bruce Lee.

Fui falar com ele. Queria saber de onde vinha tamanha habilidade, ainda mais que Valdir de Moraes não atuava na linha em seus tempos de jogador, mas no gol. Valdir contou-me que, quando jogava no Renner, time pelo qual foi campeão gaúcho em 1954, ele e o 10 do time, Ênio Andrade, passavam horas ensaiando chute a gol e lançamento.

Com o pé direito, com o pé esquerdo, e de novo e de novo e de novo, sem parar. Donde, os dois amigos desenvolveram um talento para bater na bola que jamais os abandonou. Ênio, por exemplo, nunca, nunca (eu disse: nunca!) errou um pênalti.

Certo. Contei essa história durante um debate de que participamos eu e o Professor Ruy, segunda-feira, na Saraiva do Praia de Belas. Nossa conversa ocorreu durante o lançamento do livro do Maurício Noriega, colega paulista que escreveu sobre os 11 maiores técnicos da história do futebol brasileiro.

Pois bem. Falei que Ênio Andrade nunca, nunca (falei: nunca!) havia errado um pênalti, e ilustrei essa lenda com um conhecido caso ocorrido em 1981. Ênio trabalhava no Grêmio. Leão pegava no gol. Em meio a um treinamento, Leão, com sua habitual imodéstia, arrostou: – Aí, velho: bate um pênalti. Se acertar, pago uma cerveja.

Ênio redarguiu: – Vamos fazer assim: vou bater dez pênaltis. Se você defender um, pago um engradado.

Leão pagou a cerveja.

Quer dizer: era verdade, Ênio Andrade nunca errou um pênalti. E, assim que pinguei um ponto final nessa frase, ergueu-se um senhor da plateia e, espetando o indicador no ar, acrescentou:

– Nem em treino! Ele batia com o peito do pé – simulou o chute de Ênio colidindo as costas da mão direita na palma da esquerda. – E nunca errava. Nunca. Nem em treino.

Nem em treino! Era o que eu dizia. Um homem que nunca errou um pênalti, nem em treino, é como um homem que jamais foi rejeitado por uma mulher, um homem que nunca se decepcionou com um amigo, que em nenhum momento sentiu vontade de simplesmente sumir.

Depois do encontro na Saraiva, fomos provar o carreteiro da Dona Tereza, no Jazz Café, ali em frente à caixa d’ água. Trata-se de um carreteiro minucioso. O filé é cortado em pedaços mínimos, menores que a unha do minguinho.

O molho é o da própria carne, denso, quase capitoso. Junto vem uma travessa de batatas portuguesas, delgadas como asas de borboleta, mais uma salada de tomate e alface para fazer o contraponto ao sabor quente do arroz. Perfeito. Tal qual um pênalti um dia cobrado por Ênio Andrade.

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