domingo, 24 de maio de 2009


Criança toma banho de caneca com água da chuva no Maranhã

Após inundação, cidade no Maranhão caça água potável

Moradores contraem doenças e tentam limpar casas que estavam submersas

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A TRIZIDELA DO VALE (MA)


O chão de Trizidela do Vale, município às margens do rio Mearim, no centro geográfico do Estado do Maranhão, está coberto por uma lama pegajosa, quase preta, com um cheiro forte de alimento estragado. Gruda no pé.

A maior parte da cidade ainda está sob as águas que, no último dia 4, depois de uma espécie de dilúvio, elevou em seis metros o nível do rio. Fossas sanitárias, lixo e fezes misturaram-se às chuvaradas e ao leito do rio, formando um caldo rico em matéria orgânica. Os 15 mil flagelados (de uma população total de 18.500 habitantes) passam a maior parte do dia mergulhados nisso.

Doentes com um catálogo de doenças dermatológicas, como furunculose, ptiríase, micoses, escabiose, pruridos já se contam aos milhares. Segundo a secretária de Saúde de Trizidela, Ediuene Costa Souza, a situação deve piorar. "Conforme os dias vão passando, a lama apodrece e essa tragédia sanitária aumenta o risco de epidemias", disse ela.

A enchente gerou um paradoxo. Apesar do excesso de água, não há água para beber. Já não havia água encanada antes, mas poços artesianos davam conta do abastecimento -agora, a água da maioria deles está contaminada. A prefeitura contratou sete carros-pipa para fornecer água para os moradores. Mas os caminhões não conseguem passar -em muitos lugares, só de barco mesmo.

Os moradores banham-se na água imunda e bebem água de chuva, coletada dos telhados. Cozinham com uma mistura das duas - "Vai ferver mesmo, não é?", diz a faxineira Francisca Silva Nel, 19, mãe da menina Natali Nel da Silva, 2, com quadro de otite e diarreia. A cidade já conta 608 atendimentos por otite e 1.500 por diarreia.

Cocheiras

Mãe e filha são parte de 58 famílias que estão alojadas em um parque de vaquejadas ao qual agora só se chega de barco. Moravam perto dali, na rua do Campo, que encheu. Dividem o espaço das cocheiras com cavalos de até R$ 40 mil (são usados para cercar os bois, nas corridas). Mas também com porcos e porquinhos da criação local e até com gaiolas de galos de briga. Uma família mora no banheiro masculino do parque.

O local pertence ao ex-prefeito da cidade, Paulo Antonio Barros da Silva, o Paulo Maratá, e reúne todos os anos, em julho, milhares de pessoas em uma das maiores etapas do circuito maranhense de vaquejadas. Distribuem-se R$ 100 mil para os melhores cavaleiros, apresentam-se algumas das melhores bandas de forró do nordeste. Agora, o palco abriga sete famílias e suas geladeiras, fogões, móveis, televisores.

"Veio tudo apoiado na cabeça para não molhar", diz Ruteleine Souza, 39, que levou para a cocheira a mãe, de 83 anos, o marido, de 36, o filho, de 8, e três passarinhos cantadores.

As chuvas de 2009 não assustaram ninguém quando começaram, há quase dois meses. O inverno na região se caracteriza exatamente por esses aguaceiros. O pessoal já sabia: Era tempo de "trepar tudo no jirau" -quer dizer, pendurar móveis, televisores e até a geladeira a meia altura entre o chão e o teto das casas.

Mas neste ano foi diferente do que aconteceu nos últimos 22 anos. Os quatro lagos que cercam Trizidela, o rio passando no meio, subiram até alcançar o teto das casas em apenas uma noite. Quem acordou a tempo, salvou as coisas.

Ruteleine até que não é das que mais perdeu. Ficaram para trás uma cama e um colchão. Mas a mãe dela, Maria Amélia Mota, não para de chorar, recurvada -não se sabe se é dor ou tristeza.

Amélia tem medo que sua casa não aguente tanto tempo mergulhada. Dezenas já racharam, cerca de 15 desabaram.

A aflição dos moradores -principalmente os mais velhos- é visível pela movimentação onipresente dos rodos e vassouras e detergentes e desinfetantes. Com o nível das águas baixando (na sexta-feira, completavam-se três dias de estiagem), mulheres e homens entram nas casas para tentar limpá-las da lama e secá-las -retomá-las das águas.

O zelador Manuel Souza de Oliveira, 27, fez isso. Deixou a casa cheirosa, mas ainda encharcada. Os barcos motorizados, as chamadas "voadeiras", jogam ondas de água sobre os imóveis que, "amolecidos" pelo molho forçado, sofrem com o impacto. O problema é tão sério que o prefeito Janio Balé (PDT) proibiu o tráfego de "voadeiras" pelas ruas.

O trabalho de limpeza do zelador custou-lhe caro. Uma hora depois da faxina, ele caiu com uma febre de 40 graus, dor na cabeça e nos olhos. Ficou quatro dias internado.

Já apareceram sucuri de quatro metros de comprimento e uma cobra caninana de 2 metros no meio da rua. Não fizeram nada contra ninguém. O sargento Marcio Clayton Silva Bernardo, 35, do Tiro de Guerra, que tem ajudado na distribuição de cestas básicas para os desabrigados, acha que os répteis não tinham nenhuma "intenção malévola". "Apenas não sabiam mais onde começava e onde acabava o lago que era seu habitat", disse.

Os meninos de Trizidela estão achando a maior graça na fase anfíbia que a cidade vem vivendo. Com varas de pescar, iscas e geladeirinhas, fazem campeonatos de pesca de rua. Na sexta-feira, ainda conseguiam pescar pequenos surubins. "Vão para a panela", disse Anderson de Arruda, 14, risonho, meio corpo enfiado no rio que virou sua rua.

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